18.3.05

Eleições autárquicas e referendo à Constituição europeia no mesmo dia?!

Uma das primeiras propostas do neófito governo foi agendar as eleições autárquicas e o referendo à Constituição da União Europeia para o mesmo dia. A iniciativa é louvável, se for encarada pelo prisma da economia de meios. Não se fustiga o povo com sucessivas chamadas às urnas, com o seu quê se cansativo, evitando-se o risco de desmotivar o eleitorado.

Com tantos actos eleitorais em tão pouco tempo, os eleitores podem apenas votar em actos eleitorais seleccionados. A diarreia eleitoral que se avizinha pode trazer efeitos colaterais indesejados: mais uma subida na taxa de abstenção, o que logo obrigará políticos profissionais e seus compagnons de route (os comentadores políticos e os jornalistas que cultivam a intimidade com o meio político) a assobiar para o lado, fazendo de conta que o aumento da abstenção significa nada.

(É curioso constatar o comportamento assimétrico desta elite. Quando a abstenção aumenta, paninhos quentes: ou era o magnífico dia de praia que se pôs, ou o jogo entre o Atouguia da Baleia e o Messinense que capitalizava as atenções de uma nação embrutecida, ou a remota União Europeia que nada diz a um provinciano eleitorado. Quando a abstenção desce umas migalhas, as pitonisas do sistema passeiam a sua excitação cantando vitória à democracia, tecendo loas ao eleitorado inteligente que se manifestou através do voto. É patético! Nas eleições que puseram o Eng. Sócrates no poder, a abstenção diminuiu pouco mais de 1,5 pontos percentuais. Quem ouvisse os comentadores de serviço pensaria que a abstenção passou para metade …)

No que me diz respeito, esta proposta tem um efeito doloroso – como se alguém pisasse em cheio um calo vistoso. Abstencionista militante, ainda não é desta que vou votar em eleições autárquicas (à distância do acto eleitoral, esta é a minha convicção actual). Mas tenho a vontade de me pronunciar no referendo sobre a Constituição da União Europeia. Desgraçadamente, é o meu fado do desalinho. Abstenho-me nas eleições onde a abstenção não é tão elevada, e vou a votos onde as pessoas se alheiam ainda mais das suas “obrigações eleitorais”.

É aqui que a falta de razoabilidade da proposta socrática aparece com nitidez. Como decidir o dilema no dia da eleição? Se for à mesa de voto, automaticamente sou dado como presente em ambos os actos eleitorais. Ora, eu não quero votar nas eleições autárquicas. Estou a adivinhar o funcionário de serviço à mesa de voto a explicar-me que posso votar em branco. Não é isso que quero. O objectivo é abster-me. O que sou impedido de fazer, porque ao querer votar no referendo sou logo contabilizado para efeitos dos votantes nas eleições onde quero que o meu nome surja entre os abstencionistas. E assim a democracia limita a minha liberdade de escolha.

Esta ideia do pacote “dois em um” pode ser meritória para os burocratas a quem interessam mais os fins do que os meios. Enquanto a abstenção não for uma ilegalidade (é punida com multa pesada na Austrália e na Bélgica, por exemplo), ela é tão legítima como o exercício do direito de voto. A menos que, indirectamente, se tomem medidas como esta que deixam entender o contrário. Estas ambiguidades têm a suave sedução de um veneno que se vai ingerindo sem ser possível detectar os seus efeitos maléficos. Só no momento da estocada final é que despertam as luzes para o que andou a acontecer no passado.

Por isso o digo: óptima iniciativa de um governo que mostra, como cartão de visita, que não hesita em beliscar os direitos individuais de maior inviolabilidade. Começam bem! Se estes “engenheiros sociais” acreditam que descobriram a pólvora para diminuir a abstenção com a aglutinação de dois actos eleitorais num só, suspeito que os efeitos vão ser decepcionantes. No meu caso, gostava de votar no referendo europeu. Atendendo à violência sobre o livre arbítrio (imposta pela decisão do governo), apresto-me a estender a abstenção das eleições autárquicas ao referendo.

Sem comentários: