10.3.05


A alvorada

Começam os dias a crescer com o andamento do calendário. As manhãs aparecem mais cedo. Antecipam-se aos ponteiros do relógio. O que há semanas ainda se fazia na escuridão de uma noite persistente, é agora testemunha da claridade que varre a noite dos céus.

A alvorada madrugadora é um postal da Primavera que não se demora. Sinal de que as escassas horas de luz natural, ilustração do Inverno, têm os dias contados. Os primeiros raios de sol, ainda escondidos atrás da linha do horizonte, fazem-se notar, tímidos, nas centelhas que lançam no céu que se clareia. Na penumbra das coisas, a luz mágica descobre-se entre a noite que cede passagem ao dia. As nuvens finas que se entreabrem aparecem tingidas pelos tons alaranjados dos raios do sol que se anuncia com todo o seu esplendor, para breve.

É um momento em que tudo fica em suspenso. Parado, a contemplar o quadro da alvorada, esqueço-me que os ponteiros do relógio vão na sua marcha implacável. E, contudo, esta alvorada tingida de um alaranjado encantador parece intemporal. Apetece retratá-la, encaixilhá-la como um daqueles momentos memoráveis que, de tanta singeleza, alimentam uma alma com uma torrente de bem-estar sem explicação.

A alvorada de Março é uma caixa de ressonância dos dias gentis que estão para chegar. Uma lavagem de alma. Os dias sentem-se mais cedo, e as sombras da noite ficam mergulhadas na ignorância dos olhos cerrados no sono nocturno. Andando pelas ruas da cidade, estes minutos em que a luz do dia se vai impondo à escuridão nocturna trazem um cenário ambíguo, com a penumbra das coisas misturada com a luz natural que do alto vem invadir todos os recantos da terra.

Fito o horizonte e distingo uma linha divisória: do céu, a luz respingada de longe pelo sol que soergue atrás da linha do horizonte; abaixo, as árvores ainda desnudadas mergulhadas na penumbra, ainda não tocadas pela luz que vai sendo irradiada pelo sol que vem renovar o dia. Os lampiões permanecem acesos, teimando em prolongar a noite que hesita em abandonar o seu posto, que resiste em dar lugar ao dia que a vem esconder até que o testemunho seja passado outra vez.

Há um encantamento por explicar, que mil palavras são incapazes de retratar. São uns instantes fugazes: entretanto o sol perde a timidez e descobre-se, empurrando a linha do horizonte para baixo. Então o deslumbramento da escassa nitidez, o jogo de espelhos com luminosidades contrastantes, cede lugar ao luzente sol que vem polir o dia com um brilho acalorado. A genealogia dos encantos tem aqui o seu ponto final. O dia passa a correr, rotineiro, como rotineira é a imagem de multidões que desaguam nas ruas nos hábitos maquinais do quotidiano.

Virão dias em que a alvorada terá outro encantamento. Dias com a Primavera no seu pino, com as flores que despontam, as folhas que rebentam nas pontas dos ramos das árvores, os odores da polinização que se soltam das flores acabadas de irromper. Estas cores e cheiros vão-se misturar ao encantamento da alvorada, para tecer um quadro repleto de uma beleza singular. Mas a alvorada dos dias que correm tem a magia dos segredos que ela desvela. É pela ruptura com os meses sombrios da invernia que a alvorada dos inícios de Março se abraça a esta beleza ímpar. É preciso esperar que o calendário volte a dobrar todas as páginas, completando o ciclo, para voltar a sentir a recompensa de reter na memória as imagens desta alvorada piedosa.
Posted by Hello

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