9.2.05

Um estranho na própria cidade

A meio da tarde, parado no trânsito no centro da cidade. Sobre a direita ergue-se a torre dos Clérigos, majestosa. Aponta ao céu, soerguendo-se por entre o casario rasteiro que evoca a ancestralidade da cidade. Em redor, as casas testemunham o abandono do centro da cidade. Basta atravessar a fronteira para ver como o centro histórico das cidades foi tratado com esmero, num acto que presta justa homenagem ao património genético que é o passado de cada cidade. O centro histórico do Porto, pelo contrário, está ao abandono. Entristece-me ver edifícios de bela traça despedaçarem-se aos poucos, quando podiam manter-se vivos com o vigor da sua beleza histórica, embelezando o centro da cidade que definha perigosamente.

Ainda parado, com uma fila de carros à minha frente que avança a passo de caracol, volto a reparar na torre dos Clérigos. Dou comigo a pensar: é incrível como nunca entrei neste que é um dos monumentos mais emblemáticos da minha cidade. Nunca escalei a estreita escadaria em caracol que serpenteia torre acima até ao seu púlpito, para me maravilhar com a vista altaneira da cidade. Mais estranho é este sentimento: porque me orgulho da cidade onde nasci, com a sua beleza agreste, com as cores tristonhas que perpassam do cinzento afivelado pela abundância granítica.

É neste momento que me sinto estranho nesta que é a minha cidade. Confronto-me com o paradoxo de ter recordações mais nítidas de tantas outras cidades visitadas, mais nítidas do que as imagens que retenho da minha cidade. Há um sintoma que ilustra este desfasamento: no papel de um turista ávido, a cabeça anda sempre no ar, atenta a todos os pormenores que possam ser captados para reter uma imagem fidedigna de locais nunca outrora visitados.

Pelo contrário, quando percorro as ruas da minha cidade a cabeça raramente se desloca para além da linha horizontal que se perfila à frente dos olhos. Ao andar no Porto, a cabeça não se fixa nos pontos mais altos. Quando a espaços exercito a postura de turista na minha própria cidade, deparo-me com surpresas agradáveis. Pormenores de edifícios que estiveram escondidos do meu olhar durante tantos anos. Pequenos adornos que encimam as casas mais antigas, as cores e as formas que passaram desapercebidas durante anos a fio. É como redescobrir a cidade que esteve, nos seus detalhes, em hibernação.

Por vezes sinto-me estranho na minha própria cidade. Quando descubro alguns destes pormenores escondidos detrás de um biombo construído pelos meus olhos, é como se conhecesse melhor outras cidades onde sou forasteiro. Quase me leva ao involuntário desenraizamento do Porto natal. Sem razões, a não ser a rotineira passagem pelas ruas da cidade. Quando penso que a conheço nos seus detalhes, descubro a cada dia que há recantos, ruas, molduras que retratam as paisagens mais belas que me são reveladas com a distracção do olhar. Descubro então que retenho na memória pormenores mais avivados de outras cidades.

É o torpor diário que me esconde a cidade por descobrir. E, contudo, o Porto é uma cidade pequena. Que, no entanto, parece esconder mil e um segredos que estão à vista desarmada. Os olhos encandeiam-se com a rotina que asfixia, que impede de devotar a atenção que os recantos desconhecidos merecem.

Desconfio que nunca hei-de conhecer o berço que me viu nascer. O que angustia. É bom ter a ambição de conhecer muitos locais, tantos quantos o tempo e a disponibilidade para viajar permitem. Mas desencanto-me por dar conta que esta ambição remete para um esconso lugar das prioridades o conhecimento dos lugares escondidos da minha cidade.

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