31.12.04

O adeus a 2004

Último dia do ano, tempo de balanços – é o costume a que somos conduzidos. Olha-se para trás, condensa-se o que de bom o ano trouxe, tenta-se enxugar as tristezas dos maus momentos que foram fustigação pessoal. Vou ensaiar um balanço do ano recorrendo às letras do alfabeto. Para cada letra, um acontecimento marcante, pela positiva ou pela negativa; uma pessoa que deixou a sua marca; uma reflexão sobre algo que revelou a sua importância em termos pessoais.

Apito dourado – Uma das poucas boas notícias de 2004. Uma investida contra as regalias do futebol, que durante anos a fio insistiu em ser um mundo à parte, acostumado a benesses vedadas a outras actividades. O último acto: esperar vinte e cinco anos para que as manigâncias do “Papa do norte” tenham caído nas malhas da justiça. Supremo gozo!

Beleza – Ter ainda energia para descobrir coisas e pessoas que marcam o reencontro entre a vida e o que de belo ela tem. Pequenas coisas, pequenos gestos, coisas corriqueiras que têm tanto significado. Sentir que a beleza é um dom da vida, o leme que conduz a existência para além dos impiedosos descaminhos do quotidiano.

Comunicação social – Para um defensor do mercado, custa reconhecer que os efeitos da concorrência desenfreada têm sido maus. A qualidade anda pelas ruas da amargura. O sensacionalismo é o critério dominante. Derrotou o rigor da informação. Dirão os defensores do actual estado de coisas que a comunicação social apenas responde às preferências da audiência. Sinal de democratização da informação, pois o povo gosta de ver sangue, de deambular pelas perversidades que abundam, de se perder em coisas menores que são transformadas nas coisas mais importantes da vida. Só não tenho a certeza da ordem dos factores: se é a imprensa que apenas segue as preferências macabras e mesquinhas de uma população ignorante, ou se é a imprensa que alimenta este estado de coisas, afinal achincalhando-se a si mesma.

Democracia – Lugar-comum dizer-se que é o pior de todos os regimes se todos os demais forem excluídos. Tapar o sol com a peneira (por exemplo, desvalorizando o significado da abstenção meteórica em sucessivas eleições) não contribui para a qualidade da democracia. A crise do regime é indisfarçável. Evitar debater esta crise é um tabu que mostra a intolerância dos democratas. Como se tudo fosse passível de debate, menos a democracia em si. Posturas deste tipo apenas contribuem para o definhar da democracia. Com o perigoso cenário que se adivinha. As visões radicais podem dar ensinamentos salutares. Hans-Hermann Hoppe, com o livro Democracy – the God that Failedfornece interessantes pistas para reflexão.

Ena Pá 2000 – Vinte anos de carreira, vinte anos a contribuir para a cultura nacional. A arte de um resistente: Manuel João Vieira, altos e baixos (o último disco, “A luta continua”, deixa no ar um cheiro a “melhores dias já passaram”), mas um contributo inestimável. Aproximando-se eleições presidenciais, espero que o candidato Vieira não fique preso aos tabus de outros putativos candidatos (Cavaco & Guterres SA.) e intervenha, decidido, desorganizando com a sua rebeldia a monotonia política instalada.

Felino – O blog do autor, uma experiência diária de escrita, um ensaio de ginástica mental experimentada pela manhã. O gosto pela escrita, um refúgio ditado pelo cansaço da investigação a que a profissão obriga. Já lá vai quase um ano de palavras acumuladas.

Guerra – Ainda e sempre. Guerra, sinónimo da estupidez do ser humano. De como ele se deixa apoderar por causas que considera serem causas de um colectivo. Colectivo que encontra noutro colectivo o inimigo a abater. Causas em nome de colectivos que submergem a voz dos indivíduos. São as vítimas necessárias dessas causas imbecis, do aprisionamento do indivíduo perante o devir forçado do colectivo onde se convencionou o indivíduo pertencer. Enquanto a pessoa continuar a ser membro necessário da sociedade, esperamos que as guerras continuem a dizimar o mundo. É o fado da natureza humana.

Honestidade – O que mais falta faz no debate de ideias. A honestidade intelectual ausenta-se, levando os oponentes a expedientes que são alçapões para o adversário. Que riposta na mesma moeda. Uma discussão de ideias já há muito que deixou de ser uma “boa discussão”. O debate é instrumentalizado na ânsia de derrotar o oponente. É um terreno em que tudo vale para fazer vingar as teses contra as do adversário. Incluindo a vulgarização do oponente. A discussão é desviada para o acessório. A substância fica perdida nas minudências regurgitadas pela desonestidade intelectual. Nivelamento por baixo, é a consequência óbvia.

Igreja – Continua longe dos tempos modernos, presa aos arcaísmos das concepções dogmáticas do passado. Anacrónica, insiste em desempenhar o papel de consciência da humanidade. Para sentenciar comportamentos pessoais, dirimindo entre o que é “moralmente” aceitável e o que deve ser banido. Presa a uma retórica paradoxal: uma igreja dos pobres que é imensamente rica. A melhor ilustração de quem diz: “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

Jogo – É o que se adivinha de mais uma campanha eleitoral. Inverdades, promessas vãs, um apelo à memória curta do eleitorado. Políticos que palmilham o terreno, desdobrando-se em sorrisos de orelha a orelha, distribuindo apertos de mão, beijinhos e bandeirinhas a um povo que gosta de ser enganado. A um povo que acha que jogando o jogo de acordo com as regras que eles, políticos, estabelecem, está a ser actor principal na democracia em que pensa viver. Uma farsa, apenas uma farsa. Captado o voto, a democracia reencontra-se com a sua verdadeira essência contemporânea: ignorar os governados.

Leonor – (que protesta enquanto escrevo estas linhas…) Que mais poderia ser?!

Maremoto – (E não “marmoto”, como muitos jornalistas insistem em escrever e dizer…) Que me lembre, esta foi a manifestação da natureza mais devastadora que testemunhei através das lentes alheias. Com efeitos que ainda estão a ser contabilizados, a cada dia que passa. Diz-se que a natureza foi assassina, na destruição que espalhou pelo sul da Ásia. Nas esquinas do destino, ela acabou por ser contemporizadora: quantas mais pessoas não teriam sucumbido se o maremoto tivesse acontecido durante o sono geral?

Niilismo – Continua a ser uma deriva necessária, forma metódica de olhar o mundo em redor. Exteriorização da insatisfação, penoso exercício com frutuosa produção (pelo menos em quantidade…). A teimosia em ver na deriva niilista uma desconstrução do mundo que é, em si, um contributo para que as coisas possam ser diferentes. Não é apenas destruir por destruir, pelo gosto de destruir. É desconstruir para terraplenar o terreno para uma edificação diferente – ainda que de momento não consiga tipificar essa construção…

Oxalá – 2005 seja aquilo que as pessoas queiram que ele seja. Sem os desejos inócuos do género “paz no mundo” (irrealizável) e “saúde para todos” (os hospitais poderiam fechar, o que é impensável).

País, de Portugal – Portugal desgraçado, sorte inditosa. Crise, sempre crise. Crise de onde nunca conseguimos sair. Crise de confiança, descrença nas potencialidades que temos. Desgovernados por uma casta de inúteis, que se agarra à tábua de salvação da política por mais nada saber fazer na vida. P, também de primeiro-ministro, também de Pedro Santana Lopes. Num ápice, do deslumbramento ao abismo: do zénite de uma carreira política, com o menino herdado nos braços face à deserção de José Barroso; ao tapete tirado debaixo dos pés por um presidente da república que deixou de ser compreensivo. Outro exemplo de nivelamento por baixo.

Qualidade – Quando chegará o tempo em que nos convencemos que a qualidade deve ter precedência sobre a quantidade? Para não vivermos afogueados pelo tempo que passa, pelos balanços em que ajuizamos o muito que ficou por fazer, em vez de darmos valor ao que fizemos, à arte do que foi feito. Como o tempo passa célere, somos educados a definir objectivos que se sucedem a uma velocidade vertiginosa. O tempo anda descompassado da vida, com nefastos efeitos para a qualidade da vida que temos.

Rir – Única solução. Não perder tempo com o estado calamitoso do mundo, do país. É perda de tempo e é o mapa óbvio para a infelicidade, para o mal-estar interior. A solução é libertar o riso quando antes a reacção espontânea seria abanar a cabeça em sinal de incredulidade. Deixar vir ao de cima o cinismo, a resposta adequada à indisfarçável falta de qualidade dos que se acham decisores. Cinismo como complemento do cepticismo, ou apenas cinismo como atenuante do cepticismo? Dúvida ainda metódica.

Sporting – Ainda estou para perceber: a necessidade de saneamento financeiro, depois de décadas de viver acima das posses (maleita de todo o futebol nacional) vinga como expoente da transição para um modelo de gestão racional; mas as vitórias ficam adiadas. Até quando? Ainda estou para perceber se o esforço de racionalização vai trazer no futuro alguma grandeza, ou se é o reconhecimento de que o meu clube é a da segunda divisão europeia. Entretanto, um presidente desbocado, preso aos compagnons de route socialistas (com o que isso implica de falta de credibilidade), pedrada no charco – é certo – mas usando as armas erradas: insistindo na intervenção do poder político para sacudir a manta nauseabunda do futebol português.

Tabaco – Diria, antitabagismo primário. Mais actos para um combate cego contra os direitos individuais. Proibições em catadupa são anunciadas, outras ficam prometidas. Com a agravante do precedente que se abre: hoje os tabagistas, amanhã quem será perseguido nesta cruzada moralista?

União Europeia – ano marcante: um alargamento sem precedentes (passámos de quinze para vinte e cinco, acolhendo oito países de leste que souberam libertar-se das garras do comunismo); uma Constituição aprovada, cheia de defeitos, é certo, mas uma Constituição que garante a limitação dos poderes contra os direitos dos cidadãos. Só por isso, um contributo inestimável da União Europeia para a liberdade individual. A mesma União que é o garante de que as asneiras domésticas vejam os seus efeitos atenuados. Os abalos telúricos da incompetência política caseira são amortecidos pelas decisões com impacto tomadas pela União Europeia. Para bem dos nossos males.

Vitórias – Pessoais, algumas. 2004 é um ano para recordar para todo o sempre: o nascimento da primeira filha é motivo suficiente para que um ano seja uma recompensa pessoal incomensurável. No mesmo mês em que o doutoramento foi uma meta cumprida. Motivos de satisfação num ano ímpar.

Xico-esperto – Continua a ser o homem de sucesso neste país feito de improvisos e de expedientes. Nos negócios, na escola, na política, em todos os domínios. Vinga quem se mexe, quem usa estratagemas que o colocam a frente dos demais. Não quem tem valor. O Xico-esperto é a imagem nacional da mediocridade latente. Que tem efeitos acumulados: perante a dificuldade em vencer o “xico-espertismo”, as pessoas são levadas a embarcar nas regras do jogo. No rescaldo, um país inoperante. (Ou de como fui, eu mesmo, Xico-esperto para encontrar alguma coisa que dizer com a letra X…)

Zaratustra – “Assim falava Zaratustra”, obra-prima de Nitzsche a que regresso de vez em quando para tentar compreender o fluir do mundo. A mais de dois séculos de distância, ainda o espelho fiel do dos comportamentos humanos que tendem para a auto-flagelação. A compreensão de que nascemos para fugir da felicidade. Como se tivéssemos medo dela, embrenhados numa estúpida irracionalidade que nos atira para uma escala inferior à de outros animais ditos…irracionais.

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