23.11.04

O referendo à Constituição europeia: um dilema

O referendo anuncia-se só lá para Abril de 2005. Entretanto, na semana passada foi dado a conhecer o teor da pergunta. A escolha, cozinhada entre os deputados do PSD (ou PPD-PSD?) e do PS, revela o pior do bloco central que tem dominado a paisagem política nos trinta anos de regime democrático que levamos: as meias-tintas, a indecisão, a manipulação em nome do “consenso democrático”.

Não é uma pergunta, mas o “três-em-um”: na mesma questão os cidadãos deparam com três perguntas. Por ordem, questiona-se a opinião em relação à Carta dos Direitos Fundamentais, às decisões por maioria no seio do Conselho de Ministros, e à arquitectura institucional da União Europeia. Como se já não bastasse a falácia de subdividir a pergunta em três questões (com as consequências negativas que vou abordar de seguida), a “pergunta” está mal elaborada.

Por um lado, porque a primeira interrogação conduz os cidadãos a uma resposta afirmativa. Quando se pergunta, “está de acordo com a Carta dos Direitos Fundamentais”, parece óbvio que o cidadão médio, mesmo desconhecendo o conteúdo da Carta, sabe o que representa o respeito pelos direitos fundamentais. Sendo um valor caro à defesa dos direitos individuais, pode haver aqui a indução do voto. Em segundo lugar, as incorrecções prosseguem o seu caminho por a “pergunta” partir do específico para o geral – entre a primeira e a terceira questão vai aumentando o grau de abstracção. Ora o bom senso aconselhava que o método fosse o oposto (isto a manter-se a teimosia de incluir três perguntas no mesmo referendo).

Por fim, a corrupção do referendo está na subdivisão em três perguntas. Como devo actuar se concordar com duas, discordando de uma terceira? Voto a favor, mesmo que a pergunta com a qual discordo seja a relacionada com a arquitectura institucional da União (a mais geral de todas)? O que fazer se discordar de duas perguntas e apenas aceitar a Carta dos Direitos Fundamentais (mas este apenas é muito poderoso, tal a importância da Carta)? Rejeito a Constituição e impeço a força vinculativa da Carta, com o que isso significa de desprotecção dos meus direitos fundamentais?

A inabilidade dos políticos que confeccionaram a pergunta é notória. Com uma agravante: perpassa a imagem de que a classe política abrigada no bloco central se quer apenas desonerar dos problemas de consciência que a atormentariam caso o país não referendasse a Constituição da União Europeia. Assemelha-se a um acto de contrição, em que a pessoa que expia um pecado o faz a contra-gosto, apenas para se eximir dos fantasmas que ficam a pesar na sua consciência. Para fazer um referendo tão despropositado como este, creio que a opção preferível era não referendar a Constituição. Por vezes, entre fazer mal e nada fazer, a última é a solução menos danosa.

Até porque o acto em si – o referendo, nesta modalidade absurda ou noutra mais razoável – está à partida inquinado. Alguém acredita que os cidadãos vão votar em consciência? É preciso explicar o contexto desta interrogação. Alguém acredita que as pessoas vão queimar as pestanas a ler um texto (a Constituição) obtuso, labiríntico, maçador? As pessoas vão votar sem estarem informadas. Apenas fazem fé nas opiniões iluminadas dos fazedores de opinião (políticos ou comunicação social), com o risco adicional de que essas opiniões estejam enviesadas pelos erros comuns quando essas pessoas se põem a falar sobre a União Europeia.

O referendo à Constituição da União Europeia é uma falsidade de cima a baixo. Apenas um formalismo que pretende convencer as pessoas que a democracia se está a exercitar na sua modalidade mais nobre. Um erro total, um erro grotesco – o de convencer as pessoas que estão a exercer a sua liberdade, quando, no desconhecimento das matérias sobre as quais são interrogadas, opinam em consonância com as opiniões de quem se proclama informado sobre o tema. Uma liberdade condicionada, um sucedâneo de consulta popular.

Tenho lido algumas opiniões que verberam o cozinhado que permitiu a elaboração da pergunta impensável. Insurgem-se visceralmente contra este acordo por ilustrar uma subversão do espírito do referendo. Algumas dessas pessoas declaram-se favoráveis à Constituição da União Europeia, mas estão indisponíveis para a caucionar com o referendo absurdo que se está a preparar. Compreendo a sua revolta. Tenho, no entanto, dúvidas sobre o método escolhido. Desconfio que é um método desproporcional. Se são favoráveis à Constituição, rejeitá-la apenas pela inabilidade dos políticos nacionais é um exercício autista. É ignorar que a Constituição resultou do contributo de muitas pessoas dos vinte e cinco países que compõem a União. E que será injusto (e desproporcionado) ceifar a Constituição por uma inabilidade formal da classe política de reduzida qualidade que habita entre portas.

Não morro de amores pela Constituição da União Europeia. Acho-a excessiva na dimensão, um abcesso constitucional – as Constituições deviam ser aligeiradas, sem grandes devaneios de regulamentação, apenas contemplando os princípios gerais. Mas sou partidário dos avanços na integração europeia, desde que eles não corporizem uma centralização de poderes nas instituições da União Europeia. Acredito que a constitucionalização é um passo relevante para o aprofundamento da União Europeia. Porque não podemos perder de vista o significado histórico das Constituições: um contrato entre governantes e governados, através do qual os primeiros limitam o seu poder em relação aos segundos. Este é um resultado importante, em especial para impedir tendências de centralização que podem desvirtuar o espírito aberto da integração europeia.

Neste contexto, aceito a Constituição tal como foi concebida. Aceito-a como um produto eivado de defeitos, mas que não tem o defeito maior de me colocar contra ela como um todo. Chamemos-lhe um “mal menor”, um custo necessário para que o futuro da União não abra caminho a sucessivos atropelos às liberdades individuais por eurocratas anónimos sem respeito pelas especificidades locais. Com tudo isto em mente, coloco-me perante um dilema: o referendo é lamentável nas opções oferecidas.

Não me custa estar ao lado daqueles que censuram com veemência o cozinhado do bloco central, que assim quer empurrar de mansinho o rebanho fiel (nós, os eleitores) para uma resposta que eles acreditam ser a única possível – o sim. Por este caminho, estaria a votar “não” como manifestação de protesto contra a inabilidade, a perfídia de quem congeminou a pergunta do referendo. Ao fazê-lo, dou conta que vou contra as minhas convicções. Eis a matriz do dilema. Neste momento (e ainda faltam uns meses que podem facilitar o amadurecimento da decisão), só vejo uma solução para o dilema interior: não é votar não, mas não votar no referendo, como manifestação de protesto contra a manipulação da classe política.

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