18.11.04

Estás magro!

Esta vida é cheia de contradições. Os gordos são apontados a dedo porque abusam da gordura, agora que ela já deixou de ser formosura. Os magros não escapam à preocupação social. Quem está magro deve estar doente. Pelo menos é a sensação que tenho quando sou abordado e, perante um olhar que mistura comiseração e preocupação, se solta um “estás tão magro”! Quando o diagnóstico é feito por pessoas mais idosas ele vem atrelado a um ar compungido. Como se do outro lado estivesse alguém que, aos seus olhos, padece de uma grave doença.

Esta é mais uma expressão de como gostamos tanto das meias tintas. Nem muito gordo, nem muito magro. A prova de que “no meio está a virtude”, para glosar um ditado que o povo usa com frequência. Nestes tempos modernos em que a figura exterior conta tanto, desprezam-se os seres balofos que ostentam a sua gordura. Os mais gordos são alvo de chacota. No outro extremo estão os magros, os finguelinhas quando a descrição é feita em ar do gozo. As peles em cima dos ossos, os músculos exangues, as olheiras e a cor macilenta, a cara encovada, um ar anoréctico que hoje é doença mais inquietante do que a obesidade.

Acossado pela curiosidade alheia, sentindo as abordagens preocupadas de quem desconfia de que o peso escasso significa maleita pela certa, lá me desdobro em explicações. Digo que não, que não estou mais magro. Que mantenho o mesmo peso há mais de dois anos. Que a linha que mantenho não é sinal de nenhuma das hipóteses sombrias que as pessoas esboçam nas entrelinhas da exclamação: nem fome, nem alimentação errada, nem anorexia, nem qualquer outra doença que impede as carnes de se tonificarem em vistosas protuberâncias. Aos mais insistentes, tenho que lançar mão do último argumento, em jeito de interrogação: se a magreza fosse sinónimo de doença, como conseguia manter o exercício físico com a assiduidade que levo há anos?

Não sei se será da palidez natural que deixa na pele uma cor nada atraente quando os raios de sol não lhe conferem um tom acastanhado. Não sei se é das olheiras pespegadas pelas poucas horas de sono (coisa que sempre tive em toda a vida). Não será por falta de vitalidade física: as pessoas que tantas vezes repetem que estou magro não testemunham alguém que arrasta o seu corpo extenuado pelas ruas. Se não é por nenhum destes sintomas, fica o mistério que não explica o diagnóstico que, com pesar, traçam com a precisão de um médico.

Ao ver as fotografias que me retratam após ter acabado os estudos na universidade, nesses anos de clausura (ou de comodismo, para ser mais rigoroso) em que o exercício físico era um nada que semeava o sedentarismo, revejo uma figura com mais sete quilos. A cara cheia, um ligeiro refego no pescoço, uma barriga bem proeminente que as roupas não conseguiam disfarçar. Também recordo como as análises sanguíneas davam valores que exorbitavam os limiares de segurança. Não ser fumador era uma escassa tábua de salvação para o sedentarismo, as diabruras gastronómicas (a pior de todas: deliciar-me com 250 gramas de chantilly enquanto via um filme na televisão), a ausência de exercício físico que tolhia as articulações e trazia os músculos enferrujados.

Treze anos passados, emagreci. Comecei a cuidar da saúde – já que ouvimos tantos apelos de cardiologistas para que façamos exercício para manter uma vida saudável. Continuo a ter desmandos gastronómicos, pois não me tentam as chamadas dietas saudáveis. Emagreci, mas sinto mais energia do que há treze anos. Pesam os cabelos brancos que vão, aqui e ali, dando uma nova tonalidade. Foi-se a inestética pança que assustava quando me via de perfil ao espelho. Na louca correria por encontrar o yin e yang das meias tintas (o tal meio que é a virtude), preferem-se vestígios de gordura a vaguear pelos corpos. Antes isso do que um corpo que quase deixou de ostentar sinais adiposos.

Serão reminiscências dos tempos do renascimento, em que as figuras retratadas por artistas como Rubens eram mulheres avantajadas, corpulentas massas de gordura. Apenas os resquícios dessa tendência para reconhecer na gordura alguma formosura, porque os excessos adiposos de outrora já não são tolerados. Uma barriguinha aqui, uma coxa robusta ali, uma cara cheia acolá, a isso há muita gente que não consegue dizer que não. Corpos enxutos, covis de doença!

1 comentário:

Anónimo disse...

Inveja

Tenho inveja da tua barriga que não cresce; tenho inveja da paz de espírito que consegues ter para te dedicares a temas tão profundos ou superficiais conforme te apeteça; tenho inveja da tua capacidade de colocar em palavras aquilo que muitas vezes pensamos mas não conseguimos exprimir;
É claro que já percebeste que esta inveja é admiração.
Há dias em que os teus textos nos fazem olhar ao espelho. E nem sempre gostamos do que vemos (e não me refiro à barriguinha - no meu caso até tenho uma certa estimação pela minha).
Estás tão presente e ao mesmo tempo tão ausente deste mundo...
Um abraço amigo

Ponte Vasco da Gama