4.11.04

Da maldade (ou do perverso gosto das derrotas de que quem está nos antípodas)

Parece que desta vez a “maior democracia do mundo” (não sou eu que o afirmo…) não vai ser palco do triste espectáculo de há quatro anos. Parece que há um vencedor anunciado, apesar de todas as cautelas exigidas pela complexidade do sistema eleitoral norte-americano. Vamos aturar George W. Bush por mais quatro anos. A Europa, descontente, reabilita-se da ressaca. De tanta fé depositada no candidato anti-Bush (porque não eram adeptos entusiastas do abúlico Kerry), a Europa das causas militantes, de braço dado com as esquerdas carpideiras da desgraça, não sabe onde depositar as lágrimas que a tristeza da derrota não pôde lavar.

Para quem esteve tão envolvido em eleições que não eram as suas, o empenhamento foi notável. Sei que há quem seja da opinião que estas eleições dizem respeito a todos os que se interessam pelo andamento do mundo. Se os Estados Unidos são a única super-potência, se não hesitam no exercício de um papel paternalista que quer trazer segurança ao mundo, todo o mundo tem uma palavra a dizer. Se não pode ser através do voto – nem todos temos capacidade eleitoral activa para votar em eleições alheias – que seja através da voz de protesto que tenta influenciar quem deposita o voto.

Fui testemunha do debate que se fez por cá, Portugal e Europa, entre os apoiantes de ambos os lados. Fui apreciando a intensidade dos argumentos trocados, das acusações e contra-acusações. Como se estivesse em causa a honra beliscada, sempre que a dama preferida era atingida pela artilharia pesada dos opositores. Ambos os lados se perderam em estéreis discussões. Por um momento fui levado a acreditar que “éramos todos norte-americanos”.

Eu não sentia esta condição, nem por indirectos reflexos. Estou consciente das diabruras dos Estados Unidos na política externa. Sei como este país pauta a sua conduta pela incoerência externa, ora alinhavando uma posição agora, ora mudando bruscamente de opinião e de aliados. Sou crítico, fortemente crítico, do papel desempenhado por este país (não apenas a administração Bush, todas as demais) no mundo. Estou entre aqueles que vêm no intervencionismo militar norte-americano uma causa da crispação que fermenta a hostilidade acérrima dos opositores deste país, tantas vezes com estúpidos actos de violência gratuita. Nada disto é suficiente para ter uma inclinação a favor deste ou daquele candidato. Olhando para o passado, intriga-me como há quem se entretenha a tentar encontrar diferenças entre os candidatos rivais. O passado é o património da linha de continuidade (com ligeiras nuances) quando os partidos rivais se sucedem na condução dos destinos do país.

Não sendo cidadão daquele país, não me assiste o direito de preferência por um dos candidatos. Fartei-me de ler e escutar opiniões bem pensantes: “se fosse votante, eu votava…”, era a expressão lida e ouvida até à exaustão, sobretudo nos últimos dias. Como se estas opiniões fossem importantes na contagem dos votos…

Tudo isto não me impede de manifestar um gozo particular quando assisto ao desnorte dos que apostaram Kerry. Um apoio que mais parecia um presente envenenado: não era Kerry que apoiavam, era Bush que queriam destituir. Foram estes que não hesitaram em sentenciar, do alto da sua elevada craveira intelectual, que quem vota em Bush é intelectualmente diminuído (Vital Moreira disse-o com todas as letras). Foi esta azáfama em destronar o “palhaço de serviço” que me traz agora o doce sabor de ser espectador das mágoas carpidas.

Confesso uma certa maldade: estou-me nas tintas para quem ganhou a eleição. É a diferença entre Farinha Amparo e Farinha Milanesa – um doce a quem descobrir a diferença. A maldade está em ver as baratas tontas, os habituais entusiastas das causas politicamente correctas, os que se acham acima do comum dos mortais, desorientados, sem saber o que fazer ou dizer após a derrota com que não contavam. Delicio-me com o desvario, o desgosto, a angústia que caustica esta gente.

Tenho que o afirmar uma vez mais, para que não restem dúvidas: não simpatizo, nem um pouco, com o inquilino da Casa Branca. Não me custa subscrever as críticas às opções políticas da administração Bush. Mas arrepiava-me ver a certeza das convicções, a versão moderna do filme que faz o dualismo “bom-mau”, como se tudo fosse reconduzido a categorias estanques. Com estas certezas, com o dom da verdade aspergido por estes mensageiros divinos, algumas vezes apeteceu-me ser apoiante do outro que eles queriam destituir. Mesmo não simpatizando com ele.

Por isso a malícia percorre-me por dentro, exultante com o desgosto destes profetas da verdade. Terrível sentimento, sentir bem-estar com a tristeza dos outros. É certo. E não estariam eles a pedi-las?

2 comentários:

Anónimo disse...

Percebo a tua abordagem.
No entanto, a derrota do Bush teria o mérito de indicar que a política seguida pela sua administração levava o cartão vermelho dos norte-americanos. Não levou.
É verdade que o que se discutia nestas eleições não era qual o melhor candidato. O que estava em causa era se queriam manter esta política ou não (mesmo que a alternativa fosse semelhante, mudavam as caras). A população, levada a opiniar, decidiu manter tudo como está.
Enfim, a democracia americana, como todas, tem as suas particularidades. O marketing político é levado ao expoente máximo. Isto associado à baixissima cultura geral média daquele povo, leva a este tipo de resultados.
Sou dos que não gostou deste resultado. Não suporto o poder dos americanos no mundo e não suporto a fantochada que é esta administração Bush.
Acho que o mundo já era um sítio suficientemente perigoso antes da vinda do Bush e só se tornou mais perigoso após a sua entrada em cena.
Com o Kerry talvez não mudasse muita coisa, mas ficava a esperança. Com este fica apenas a certeza de que os interesses económicos e egocentricos dos EUA continuarão a ditar as prioridades no mundo.
E mais uma coisa: o ódio aos americanos vai crescer nos próximos anos. E um dia destes não são só os povos de origem arábe a radicalizar atitudes contra os interesses americanos no mundo.
E isso não será bom para ninguém.

Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Vasco da Gama:
Partilho vários aspectos da tua análise. Mas acho perigoso que insinues que é a baixa cultura geral dos norte-americanos que explica o resultado indesejado por mais de meio mundo. Este é um argumento perigoso, porque podemos ser levados a pensar que o povo é esperto quando vota num certo sentido, mas já é burro se se inclina para outro lado.
Não concordo quando sugeres que a vitória de Kerry podia trazer alguma esperança, podia ser o anúncio de mudança. Seria mais do mesmo, talvez com outra retórica. Porque o que une os republicanos e democratas é muito mais do que os separa. Por isso continuaremos a aguentar com os EUA paternalistas, os EUA dois pesos-duas medidas, os EUA que não se cansam de desempenhar um papel de "polícia do mundo" que ninguém lhes pediu que fosse o seu.

Paulo Vila Maior