10.11.04

A constipação

Ela pesa sobre a cabeça, sobre os olhos. Injecta um mal-estar que percorre todo o corpo. Parece um espartilho que emperra os movimentos, que empurra para a indolência. A constipação é o triunfo da indolência forçada. Ao tentar combater a preguiça involuntária que se apodera do corpo e da mente, o esforço é ainda maior. O que provoca as fricções brutais para sair da camisa-de-forças que é a constipação.

A respiração é difícil. O nariz entope-se, fazendo dos seres constipados sucedâneos dos peixes que, tal como os constipados, respiram pela boca. Os espirros sucedem-se. Ao menos algo de bom na constipação: os espirros. Quando o espirro se solta é a sensação de alívio que se segue que traz o bem-estar arredio em dias de constipação. Como se uma rolha tapasse os canais que permitem uma respiração normal, eles soltam-se quando o espirro sobe desde os pulmões, passa pela garganta e explode boca fora, lançando uma quantidade interminável de bactérias que poluem o ambiente.

A visão moderna da constipação: o seu impacto ambiental. Pode parecer estranha a associação: qual a relação de causa e efeito entre constipação e poluição do ambiente, perguntam os que foram apanhados desprevenidos. É o efeito de contágio. Quando alguém está constipado e teima em ir trabalhar – e quando o local de trabalho é pouco arejado, esconso, albergando várias pessoas debaixo do mesmo tecto, numa elevada densidade demográfica – o espirro de uma pessoa constipada pode ter um efeito devastador na saúde dos companheiros de trabalho. Ou quando essa pessoa se desloca até ao trabalho, dentro de carruagens apinhadas do metro, ou nos apertões de um autocarro que ultrapassou o limite de passageiros, um espirro é o adubo de constipações alheias.

É por isto que um pouco por toda a Europa civilizada (centro e norte, portanto) as pessoas não saem de casa quando apanham a mais ligeira constipação. É uma falta de civismo quando alguém teima em aspergir as bactérias contaminadas pelas pessoas que têm o azar de se cruzar com o constipado. Sobretudo nos locais de trabalho, esta prescrição é seguida à risca. Sendo povos mais disciplinados, a censura social dirigida contra constipados que continuam a peregrinação diária para o trabalho é uma censura áspera. De tal forma que se estabeleceu o costume de qualquer pessoa, quando acometida pelos sinais mais ténues de constipação, ficar resguardada em casa. Mais do que um rápido restabelecimento, quer-se impedir que a constipação de uma pessoa seja hospedeira da constipação que se dissemina pelos colegas de trabalho. Antes ter uma pessoa retida em casa por doença do que várias.

Por cá o costume não está enraizado. Ainda não compreendemos a lógica de contágio e os seus efeitos nefastos. Continuamos a ter vistas curtas: a constipação não dá lugar a descanso forçado para retemperar forças. Não chega a ser vista como doença. É preferível não enviar para casa quem está constipado, ignorando que mais tarde pode ser necessário enviar não apenas um mas vários constipados.

Enquanto vingar a ideia, teremos de ir trabalhar quando não estamos em condições para produzir o que estamos habituados. Somos trabalhadores manietados pela constipação que se apodera de nós. A indisposição que toma conta do corpo e do espírito é outro sintoma que devia convidar à ausência para pleno restabelecimento. Não só a motivação para produzir está em baixos níveis, como existe o risco dela se propagar, com o mau humor e as bactérias aspergidas pelos espirros sem fim, às pessoas em redor.

São muitos os malefícios da constipação. Um é a desinspiração. Com efeitos visíveis: para quem quer encontrar um tema de escrita para todos os dias da semana, a constipação traz a desinspiração temática. É o deserto de ideias que, em última instância, leva a perorar sobre a causa desse deserto de ideias – a constipação. À falta de tema, atchim!

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