29.11.04

Câmara de Lisboa vai processar o Estado português!

O Supremo Tribunal Administrativo deu razão à Câmara Municipal de Lisboa (CML) na polémica sobre a obra do túnel do Marquês de Pombal, parada depois de um advogado ter interpelado um tribunal, supostamente em nome do “interesse popular”. Como é normal no funcionamento da justiça, as decisões eternizam-se (talvez pelos juízes sentirem a necessidade de amadurecer uma decisão que seja justa…).

A justiça pode tardar mas não adormece. Olhando aos interesses do município de Lisboa, agora fez-se justiça. O mesmo não se pode dizer dos interesses do zeloso advogado (qualquer coisa Sá Fernandes), que logo a seguir a ter tomado conhecimento da sentença teve o despautério de tecer comentários pouco abonatórios para a competência dos juízes. Há coisas que se podem pensar, mas não convém gritar alto na praça pública. Sob pena de se cair no ridículo, de se auto-enxovalhar perante um mau perder pouco olímpico.

Estamos num tempo em que as pessoas andam à compita a ver quem vence o campeonato do ridículo. As atoardas seguem-se, umas atrás das outras, como se as partes em confronto mostrem inveja do rival e queiram, após uma boutade do outro, dar um tiro no pé que é ainda mais retumbante. Vale a pena contextualizar. Bastava o mau perder do advogado Sá Fernandes, a sua azia ao sentir-se derrotado pelo tribunal; mas, logo de seguida, o doce sabor de uma vitória pode ser tão inebriante que o deslumbramento (ou a gula de achincalhar o derrotado) conduz ao destempero. A CML, ainda estonteada pela bebedeira da vitória, está a reflectir sobre a hipótese de processar o Estado português. As razões: os prejuízos da paragem das obras, enquanto a justiça não decidia sobre o conflito de interesses.

Há coisas que não lembram ao diabo! Os meandros do direito têm mistérios insondáveis, caminhos tortuosos, incompreensíveis para o comum dos cidadãos. Imagino as pessoas apinhadas num comboio, a caminho do trabalho, a tentarem perceber como pode uma autarquia pedir responsabilidades ao Estado, se afinal ambas fazem parte da mesma estrutura chamada…Estado. Como se fossem membros da mesma família que, desavindos, acabam por se encontrar de lados contrários da barra do tribunal. Como se o tribunal fosse chamado a mediar esta espécie de parricídio em que o filho (CML) se queixa dos escolhos que o pai (o Estado, em sentido lato) meteu pelo caminho. Mais absurdo se torna este conflito quando se pensa que ele é corporizado por políticos que estão do mesmo lado da barricada – o presidente da CML, sucessor do actual primeiro-ministro.

Esta ideia assombrosa tem outras inanidades. Se a CML quer que um tribunal declare culpado o Estado pelos atrasos causados na obra do Marquês, estamos a falar da maior autarquia do país a querer pedir responsabilidades a todo o país. Se em Lisboa vive perto de 20% da população do país, não deixa de ser curioso observar como, através da intenção manifestada pela CML, 20% da população quer que o resto do país se responsabilize pelos prejuízos trazidos pela paragem da obra. Com mais um requinte de malvadez: se o Estado for condenado, tendo que pagar uma vultuosa indemnização, ela sai dos bolsos de todos os contribuintes, incluindo dos lisboetas!

As coisas correram de feição à CML. Se se inverter o cenário, há deliciosas interrogações que ficam a pairar no ar: poderia o Estado português colocar a CML em tribunal, porque estava um buraco a céu aberto que carecia de solução? Podê-lo-ia fazer, pela insensatez de ter projectado um túnel que (de acordo com alguns) não cumpre as normas de segurança para obras do tipo? Indo mais longe, poderiam os responsáveis políticos pela decisão que consentiu a obra sentar-se no banco dos réus? Nesta hipótese, com o requinte de que seria o actual primeiro-ministro (por quanto tempo, ainda?) a responder como réu numa acção colocada pelo Estado português, de que seria o seu máximo responsável…

A vida moderna é muito complexa. Mas não é necessário complicá-la ainda mais com decisões inauditas, inquinadas pelo ridículo. A maior dignidade da vitória é festejá-la sem foguetório, de forma discreta. O ruído dos festejos pode trazer consequências colaterais que expõem os vencedores ao absurdo que é espezinhar os perdedores. É o caminho para se perder a razão.

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