30.11.04

A greve aos TPC

Algumas associações de pais convidaram os filhos à rebeldia. Convidaram-nos a fazer greve aos trabalhos para casa (TPC) marcados pelos professores. Devem ser daquela gesta de novos pedagogos para quem a aprendizagem passa mais pelo lazer, não tanto pelos métodos que cimentam uma cultura de trabalho. Da forma como o mundo anda, já nem sequer é de pasmar a iniciativa. Hoje foram os petizes a fazer greve aos TPC, como amanhã podemos ver o governo em bloco a fazer greve contra a incompreensão manifestada pelo país, contra a perseguição que se diz alvo da comunicação social (da não controlada pela PT…), contra as diabruras sem fim agendadas pelos partidos da oposição.

Quando vi imagens de jovens a serem entrevistados, testemunhei um chorrilho de queixumes: as aulas já ocupam muitas horas por dia, ainda têm que dedicar mais tempo em casa para fazerem os TPC, tudo isso furta tempo precioso para poderem descomprimir, impede-os de fazerem o que realmente gostam – o entretenimento. As lamúrias ecoam sem cessar: têm o tempo muito ocupado para a tenra idade em que ainda navegam. Não querem ser émulos dos adultos que se queixam do tempo que escasseia, de não conseguirem viver a vida nas coisas belas, nos prazeres extra-profissionais que ela oferece.

Amparados pelos novos pedagogos que não se cansam de apregoar revolucionários métodos de ensino, que cada vez têm menos de ensino e mais de outra coisa qualquer, os meninos protestaram contra a carga de trabalhos. Como protestam contra as aulas de noventa minutos, contra os exames, contra os professores quando eles não estão do seu lado, contra o ministério nas decisões que atentam contra os seus interesses – que são sempre no sentido do facilitismo, desprezando o rigor em que o sistema educativo deve estar empenhado.

Causa-me estranheza este combate das novas gerações. Primeiro, tenho sentido que os alunos chegam aos bancos da universidade com preparação medíocre. A culpa vem de trás, do laxismo com que o ensino é olhado no ensino básico e secundário. Uma vez feitos alunos universitários, muitas vezes o choque é brutal. Quando pensam que a universidade é uma mera extensão do ensino secundário (uma espécie de “13º ano”), sentem na pele a impreparação acumulada em anos de escola. Não conseguem lidar com a maior exigência da universidade. Os primeiros resultados de exames trazem a frustração. Muitas vezes trazem também a desmobilização que leva a elevadas taxas de abandono nas universidades.

Nada disto sucedia se, em níveis anteriores, os alunos fossem educados noutra cultura, se fossem enaltecidas as virtudes do trabalho. Não vou desmerecer a validade do entretenimento. Nem me apetece contestar as peregrinas ideias de que o ensino deve ser prazer, e que sempre que o ensino entrar em conflito com o prazer deve ser dada primazia ao entretenimento. Apenas digo que de tanto se apostar nesta “pedagogia” as suas vítimas são os próprios alunos que supostamente pensa beneficiar. É responsável por um hiato tremendo: entre a saída da escola e a entrada na universidade. Verdade seja dita, apenas naquelas universidades onde a cultura do facilitismo ainda não se instalou. Onde ela já assentou arraiais, o hiato é ainda mais grave: estabelece-se entre a saída do ensino e a entrada no meio profissional. Um sistema de ensino assim caracterizado produz pessoas sem preparação nem maturidade para enfrentar os desafios da selva profissional.

Segundo, os progenitores que defendem as facilidades não agem em proveito próprio (se se admitir que eles querem o melhor para os filhos). Os pais sabem que a vida profissional é cada vez mais exigente (a menos que sejam funcionários públicos, onde as mordomias andam de mão dada com o laxismo, e a falta de brio profissional é latente). Sabendo-o, clamam por mais tempo livre para as crianças, apostam num sistema que as furta dos deveres de trabalho e da cultura de rigor. Em síntese, não são amigos dos seus filhos por se demitirem de lutar por um sistema que os prepare melhor para os desafios do futuro.

Talvez seja mais fácil aos pais das novas gerações fazer sempre as vontades aos filhos. É mais cómodo, por não terem que aturar a pedinchice dos filhos. É caso para dizer que o tempo livre dos filhos – as horas a fio a jogar educativos jogos de Playstation – é o tempo livre dos pais. O tempo em que não têm que aturar os filhos; mas também o tempo da irresponsabilidade de educar os filhos numa cultura de facilidades que sabem, por experiência própria, não ser aquela que os seus filhos vão encontrar lá fora.

29.11.04

Câmara de Lisboa vai processar o Estado português!

O Supremo Tribunal Administrativo deu razão à Câmara Municipal de Lisboa (CML) na polémica sobre a obra do túnel do Marquês de Pombal, parada depois de um advogado ter interpelado um tribunal, supostamente em nome do “interesse popular”. Como é normal no funcionamento da justiça, as decisões eternizam-se (talvez pelos juízes sentirem a necessidade de amadurecer uma decisão que seja justa…).

A justiça pode tardar mas não adormece. Olhando aos interesses do município de Lisboa, agora fez-se justiça. O mesmo não se pode dizer dos interesses do zeloso advogado (qualquer coisa Sá Fernandes), que logo a seguir a ter tomado conhecimento da sentença teve o despautério de tecer comentários pouco abonatórios para a competência dos juízes. Há coisas que se podem pensar, mas não convém gritar alto na praça pública. Sob pena de se cair no ridículo, de se auto-enxovalhar perante um mau perder pouco olímpico.

Estamos num tempo em que as pessoas andam à compita a ver quem vence o campeonato do ridículo. As atoardas seguem-se, umas atrás das outras, como se as partes em confronto mostrem inveja do rival e queiram, após uma boutade do outro, dar um tiro no pé que é ainda mais retumbante. Vale a pena contextualizar. Bastava o mau perder do advogado Sá Fernandes, a sua azia ao sentir-se derrotado pelo tribunal; mas, logo de seguida, o doce sabor de uma vitória pode ser tão inebriante que o deslumbramento (ou a gula de achincalhar o derrotado) conduz ao destempero. A CML, ainda estonteada pela bebedeira da vitória, está a reflectir sobre a hipótese de processar o Estado português. As razões: os prejuízos da paragem das obras, enquanto a justiça não decidia sobre o conflito de interesses.

Há coisas que não lembram ao diabo! Os meandros do direito têm mistérios insondáveis, caminhos tortuosos, incompreensíveis para o comum dos cidadãos. Imagino as pessoas apinhadas num comboio, a caminho do trabalho, a tentarem perceber como pode uma autarquia pedir responsabilidades ao Estado, se afinal ambas fazem parte da mesma estrutura chamada…Estado. Como se fossem membros da mesma família que, desavindos, acabam por se encontrar de lados contrários da barra do tribunal. Como se o tribunal fosse chamado a mediar esta espécie de parricídio em que o filho (CML) se queixa dos escolhos que o pai (o Estado, em sentido lato) meteu pelo caminho. Mais absurdo se torna este conflito quando se pensa que ele é corporizado por políticos que estão do mesmo lado da barricada – o presidente da CML, sucessor do actual primeiro-ministro.

Esta ideia assombrosa tem outras inanidades. Se a CML quer que um tribunal declare culpado o Estado pelos atrasos causados na obra do Marquês, estamos a falar da maior autarquia do país a querer pedir responsabilidades a todo o país. Se em Lisboa vive perto de 20% da população do país, não deixa de ser curioso observar como, através da intenção manifestada pela CML, 20% da população quer que o resto do país se responsabilize pelos prejuízos trazidos pela paragem da obra. Com mais um requinte de malvadez: se o Estado for condenado, tendo que pagar uma vultuosa indemnização, ela sai dos bolsos de todos os contribuintes, incluindo dos lisboetas!

As coisas correram de feição à CML. Se se inverter o cenário, há deliciosas interrogações que ficam a pairar no ar: poderia o Estado português colocar a CML em tribunal, porque estava um buraco a céu aberto que carecia de solução? Podê-lo-ia fazer, pela insensatez de ter projectado um túnel que (de acordo com alguns) não cumpre as normas de segurança para obras do tipo? Indo mais longe, poderiam os responsáveis políticos pela decisão que consentiu a obra sentar-se no banco dos réus? Nesta hipótese, com o requinte de que seria o actual primeiro-ministro (por quanto tempo, ainda?) a responder como réu numa acção colocada pelo Estado português, de que seria o seu máximo responsável…

A vida moderna é muito complexa. Mas não é necessário complicá-la ainda mais com decisões inauditas, inquinadas pelo ridículo. A maior dignidade da vitória é festejá-la sem foguetório, de forma discreta. O ruído dos festejos pode trazer consequências colaterais que expõem os vencedores ao absurdo que é espezinhar os perdedores. É o caminho para se perder a razão.

26.11.04

A arte da simplicidade: uma montra original

Há dias escrevi sobre os malefícios do consumismo profetizados pelos novos guardiães da consciência de todos nós. Dizia então que a publicidade é um dos alicerces do consumo desregrado. A publicidade serve-se, cada vez mais, de mensagens sublimes para captar as preferências dos compradores. Uma imagem estudada com detalhe, a mensagem elaborada, frases certeiras disparadas para atingir em cheio o público-alvo. Os publicitários são dos profissionais mais bem pagos nos dias que correm. O que diz muito da utilidade da publicidade para a estratégia das empresas.

Hoje passei por uma padaria conceituada, mas tradicional, e pude observar que os requintes da publicidade já chegaram a este apeadeiro da tradição. Numa das montras, garrafas e mais garrafas de água do Luso, empilhadas em prateleiras divididas em três estratos. Parado no semáforo, à espera do sinal verde, pude apreciar o belo efeito que aquelas garrafas de tamanho diferente emprestavam à montra. Um efeito singelo, é certo, mas a beleza das águas cristalinas que abrilhantavam a montra com simplicidade.

Os especialistas de marketing sabem que uma montra elaborada com cuidado e requinte é um engodo para os consumidores. As marcas digladiam-se para colocar os produtos nos escaparates de lojas de renome, sabendo que é a melhor forma de os publicitar, meio caminho andado para um sucesso de vendas. Até existem cursos profissionais para “manipuladores de montras”, em que (imagino) são ensinados os segredos, as pequenas coisas que separam uma montra apelativa de uma montra que afugenta a clientela. Ao reparar que vivemos afogueados pela complexidade desta “arte”, ver a montra da padaria repleta de garrafas de água do Luso teve um efeito tonificante – como se fosse um contra-golpe, a negação dos hábitos que se vão consolidando.

Quando o requinte cresce a olhos vistos, dando razão aos que pensam que “os olhos também comem”, aquela padaria era a antítese. Pelo menos é nesta ingenuidade que quero estar ancorado, acreditando que não houve dedo dos especialistas em “manipulação de montras”. Quem sabe se este exemplo não pode servir de estudo de caso para os especialistas de marketing, um esboço de simplicidade que se furta às teias arrevesadas da sofisticação e do requinte? Quem sabe se esta montra não será um ponto de viragem, a consagração da simplicidade, o reconhecimento de que o mais difícil de alcançar é a simplicidade?

Que fique bem entendido: nada disto contradiz a apologia do consumo de há dias. Podemos continuar a ser empurrados para a voragem consumista sem que daí venham grandes danos, desde que a liberdade individual continue a ser respeitada e que os apóstolos do “fascismo de costumes” não sejam escutados. Mas quem sabe se este singelo exemplo de uma montra garrafas de água apinhadas numa ordenação surpreendente não desbrava um caminho alternativo: um caminho que apela ao regresso à simplicidade das coisas, que desdenha da artificialidade que se impregna na sofisticação de produtos que exaltam a imagem e obrigam as pessoas a gastar rios de dinheiro apenas para ostentar um símbolo de uma marca de renome.

Quando o semáforo esverdeou, meti a primeira e arranquei. Subitamente, da memória desprendeu-se um episódio que teve contacto com aquela padaria, já lá vão mais de dez anos. Depois de uma noite frenética com os amigos, de bar em bar, com os níveis etílicos para além do permitido a quem se senta ao volante, acabámos a tomar ali o pequeno-almoço, já a luminosidade do dia tinha espaventado o escuro da noite. Comprovei então que era hábito da tribo que ululava na noite convergir naquela padaria para afagar o estômago depois da mistura explosiva de álcool e do fumo que enxameia os bares e discotecas.

Desconheço se, passado este tempo, o ritual ainda se mantém. Caso ainda aconteça a noite acabar naquela padaria, percebo agora a mensagem subliminar da montra: imagino os donos da padaria, cansados do triste espectáculo de criaturas cambaleantes consumidas pela agressividade etílica. Imagino-os com uma condescendência paternalista a olhar para estas criaturas exangues de forças que ali vêm desaguar. Concluindo que do que elas precisam é de água para sarar as feridas abertas por mais uma noite de copos. Por isso as garrafas de água do Luso amontoadas na montra. Que é como quem diz, dirigindo-se a alguém que não consegue traçar uma linha recta tão atarantando está pela bebedeira, “bebe água que isso passa-te”!

25.11.04

“O professor de epidemiologia”

Não sou daqueles que apelidam as gerações mais jovens como geração rasca. O epíteto fica bem a quem o inventou, decerto o produto de gerações que congeminaram as dificuldades por que são obrigados a passar os alunos desde tenra idade, desde que vão para os bancos da escola e são as cobaias vivas de sucessivas reformas curriculares. Estas gerações têm sido os nutrientes convenientes de devaneios pedagógicos que colocaram o sistema educativo à deriva. Não são a geração rasca, definitivamente. São a geração à rasca. As responsabilidades repousam nas consciências das luminárias que os puseram nesta delicada situação. Estas mentes iluminadas, que se acham um passo à frente dos demais, são os únicos rascas.

Como digo, tento escapar ao confronto de gerações que alimenta páginas de romances. Mas não consigo evitar a perplexidade que me é trazida pelo contacto diário com alunos. Males da profissão! O derradeiro episódio ilustra a ansiedade que se apodera quando certas criaturas que vegetam pelos bancos da universidade mostram um alheamento total do ambiente que os rodeia. Há dias ocupei uma sala de aula que não me estava atribuída. Os alunos que se dirigiam àquela sala davam de caras com um professor que não é o seu. Mostravam estranheza e, pasmados pela surpresa, ficavam inertes diante do vidro que faz das salas de aula aquários com vista para o exterior.

Verificando a atrapalhação daquela gente, abri a porta e perguntei qual era o professor que procuravam. A resposta foi: “é o professor de epidemiologia”. Insisti, pedindo o nome do professor, pois a resposta que me tinham dado não me ajudava na tentativa de os ajudar. Do outro lado não vieram novidades: “é o professor de epidemiologia”, repetiram com desdém ante a insistência. Para não perder a calma, convidei-os a irem a qualquer local para se informarem do nome do professor que já há mais de dois meses lhes dá as aulas de epidemiologia.

Para muitos alunos somos (professores deles) uma massa anónima, sem direito a nome. Como se fossemos meros números, neste caso, simples caras associadas a uma disciplina que os martiriza ao longo de um semestre. Não temos nome, dando razão aos que acham que vivemos numa sociedade cada vez mais despersonalizada.

Foi então que veio à memória caso semelhante passado há uns meses na sala dos professores. Duas alunas perguntaram se não tinha visto o professor de bioestatísica. Não podem adivinhar que estas disciplinas são, para mim, uma chinesice. Também nessa ocasião quis que me satisfizessem a curiosidade: gostava de saber o nome do dito professor. O nome, não a disciplina em que lhes dava aulas. Também então não souberam saciar a minha curiosidade. Também então foram recambiadas para lugar onde lhes pudessem abonar essa informação.

Não é a primeira vez que protesto indignação contra a tendência de despersonalizar as relações humanas. O que me causa espécie é a mania de olhar para as pessoas pelo que elas exteriorizam, pela sua capacidade profissional, pelo cargo que ocupam – tudo antes do nome que carregam desde a nascença. A estranheza é maior por reparar que a tendência está mais arreigada nas gerações mais novas.

Lembro-me, quando era estudante, que era importante saber o nome dos professores. Não para os tratar pelo nome, que naquela altura o distanciamento que se erguia entre aluno e professor era abismal. O tratamento era reverencial, exigindo genuflexões quando nos dirigíamos às eminências pardas. Sabíamos o nome dos professores porque era necessário para obter informações – sobre aulas a que iam faltar, sobre notas de exames, sobre horários de atendimento, etc. Esse temor reverencial não faz parte da conduta entre professores e alunos na universidade onde trabalho. Tentamos descer à terra (e, por vezes, há os que descambam para a excessiva familiaridade no relacionamento…). Talvez por isso eles desligaram-se da necessidade de saber os nossos nomes. Ou isso ou um mal congénito, o destas gerações mais novas que desprezam os nomes e afundam as pessoas num obscuro anonimato.

Somos umas peças incógnitas que decoram os cadernos dos alunos, aquelas criaturas exóticas que falam de umas coisas desinteressantes e que lhes trazem o supremo aborrecimento da avaliação para a qual têm que queimar inutilmente as pestanas. Seremos, pois, professores maquinais, desapossados do direito ao nome. Sinto nisto o alcance da vingança dos alunos pelo desassossego que lhes causamos?

24.11.04

Apologia do consumo

Estranha esta necessidade de fugir aos cânones do “politicamente correcto”. Esquivar-me da banalidade da boa consciência social que tenta impor os comportamentos aceitáveis. Ao mínimo deslize, os olhares de desconfiança tombam sobre quem se desalinha dos padrões convencionais. São os proscritos da sociedade bem pensante, as ovelhas ranhosas de um rebanho ordenado e bem comportado.

Entre os ditames que nos são impostos, a ideia de que vivemos numa sociedade que se deslumbra pela tentação diabólica do consumismo. A culpa, claro, é do capitalismo, e da sua muleta de oportunidade, a publicidade. Recentemente a censura social tem recaído sobre um novo culpado, o sistema bancário. São os bancos, com as aliciantes “ofertas” de crédito, que empurram as pessoas para mais e desnecessário consumo. Com a desvantagem adicional de as colocar com uma corda à garganta no que diz respeito ao endividamento.

Este é o diagnóstico que convém aos anjos que pairam sobre nós, comuns mortais. Eles não se cansam de chamar a atenção para os malefícios do consumo exagerado. Uns, vindos da economia, têm um comportamento mais neutral. Alertam que o consumo exagerado de hoje desvia recursos à poupança. Logo, é o investimento de amanhã que fica prejudicado, tal como a possibilidade de sermos um país mais desenvolvido. Dirão que enfermamos de um erro de perspectiva temporal: não conseguimos alcançar para além do curto prazo, deixamo-nos inebriar pelos gostos que se consomem num instante. Deixámos de ter tempo (ou apenas visão) para olhar para o nosso futuro, porque o diabo tentador do consumo está sempre ao dobrar da esquina, preparado para nos desviar da poupança.

Outros, mais folclóricos, as aves agoirentas que não perdem uma oportunidade para vituperar o sistema capitalista, põem-se em bicos de pés para assestar as baterias contra os desmandos do consumo exagerado. Pintam um quadro negro. Insinuam que somos levados no engodo de uma tenebrosa coligação: empresas de bens e serviços, empresas de publicidade que vendem estes bens e serviços, e sistema bancário que dá o crédito que alimenta o consumo. Coligação que nos empurra para consumir produtos e serviços que são meros adereços de uma fobia consumista desvairada.

Esta diabólica coligação traz a exaustão dos recursos dos particulares. Sobretudo quando é necessário aliciar os consumidores com o chamariz do crédito, esse mal-afortunado instrumento que empenha as pessoas até ao tutano para apenas satisfazerem tipos de consumo que, na maior parte das vezes, são supérfluos. A rematar o diagnóstico da doença, um arremedo de moralidade bolorenta: as pessoas deviam aceitar a contenção em vez da prodigalidade. Uma versão hodierna dos votos religiosos que traziam aos clérigos as mais diversas abstinências. Esta seria uma abstinência consumista, na benevolência de um ascetismo militante.

O discurso é apelativo. É fácil apontar as armas contra o capitalismo, contra as empresas que só conseguem produzir mais se aliciarem os consumidores, a publicidade que instrumentaliza, os bancos que seduzem as pessoas a recorrerem a mais crédito. Mais difícil é perceber que as pessoas têm livre arbítrio. Devia imperar o bom senso de reconhecer a responsabilidade individual. Com todas as consequências que daí advêm, em especial as consequências para quem se endivida até ao pescoço para saciar os excessos consumistas para que resvalou em tempos.

Inquieta-me esta moralidade intrusiva que desdenha da responsabilidade individual. Parece que somos uma horda de irresponsáveis que carece de uma tutela paternal, aqui assumida pelos sacerdotes desta nova ética anti-consumista. No fundo, desconfia-se da responsabilidade individual. O que implica uma invasão na esfera de cada pessoa. Enquanto persistir esta tendência para colocar uma mão visível e generosa sobre a cabeça de cada pessoa, dando a entender que no limite alguém há-de acorrer em seu auxílio (estas corporações que não hesitam em acusar as empresas, a publicidade e os bancos como os culpados pelos excessos de consumismo e pelo endividamento insuportável), a responsabilização individual está bem longe de cada um de nós.

Estes anjos que velam pelo nosso bem-estar esquecem-se de um aspecto decisivo: mesmo que digam que andamos iludidos pelos benefícios de um consumismo espúrio, esses são benefícios que cada pessoa sente na sua esfera. É o bem-estar de cada pessoa que é posto em causa quando os mentores da boa consciência social se insurgem contra o consumo exagerado. Tanto basta para serem denunciados.

23.11.04

O referendo à Constituição europeia: um dilema

O referendo anuncia-se só lá para Abril de 2005. Entretanto, na semana passada foi dado a conhecer o teor da pergunta. A escolha, cozinhada entre os deputados do PSD (ou PPD-PSD?) e do PS, revela o pior do bloco central que tem dominado a paisagem política nos trinta anos de regime democrático que levamos: as meias-tintas, a indecisão, a manipulação em nome do “consenso democrático”.

Não é uma pergunta, mas o “três-em-um”: na mesma questão os cidadãos deparam com três perguntas. Por ordem, questiona-se a opinião em relação à Carta dos Direitos Fundamentais, às decisões por maioria no seio do Conselho de Ministros, e à arquitectura institucional da União Europeia. Como se já não bastasse a falácia de subdividir a pergunta em três questões (com as consequências negativas que vou abordar de seguida), a “pergunta” está mal elaborada.

Por um lado, porque a primeira interrogação conduz os cidadãos a uma resposta afirmativa. Quando se pergunta, “está de acordo com a Carta dos Direitos Fundamentais”, parece óbvio que o cidadão médio, mesmo desconhecendo o conteúdo da Carta, sabe o que representa o respeito pelos direitos fundamentais. Sendo um valor caro à defesa dos direitos individuais, pode haver aqui a indução do voto. Em segundo lugar, as incorrecções prosseguem o seu caminho por a “pergunta” partir do específico para o geral – entre a primeira e a terceira questão vai aumentando o grau de abstracção. Ora o bom senso aconselhava que o método fosse o oposto (isto a manter-se a teimosia de incluir três perguntas no mesmo referendo).

Por fim, a corrupção do referendo está na subdivisão em três perguntas. Como devo actuar se concordar com duas, discordando de uma terceira? Voto a favor, mesmo que a pergunta com a qual discordo seja a relacionada com a arquitectura institucional da União (a mais geral de todas)? O que fazer se discordar de duas perguntas e apenas aceitar a Carta dos Direitos Fundamentais (mas este apenas é muito poderoso, tal a importância da Carta)? Rejeito a Constituição e impeço a força vinculativa da Carta, com o que isso significa de desprotecção dos meus direitos fundamentais?

A inabilidade dos políticos que confeccionaram a pergunta é notória. Com uma agravante: perpassa a imagem de que a classe política abrigada no bloco central se quer apenas desonerar dos problemas de consciência que a atormentariam caso o país não referendasse a Constituição da União Europeia. Assemelha-se a um acto de contrição, em que a pessoa que expia um pecado o faz a contra-gosto, apenas para se eximir dos fantasmas que ficam a pesar na sua consciência. Para fazer um referendo tão despropositado como este, creio que a opção preferível era não referendar a Constituição. Por vezes, entre fazer mal e nada fazer, a última é a solução menos danosa.

Até porque o acto em si – o referendo, nesta modalidade absurda ou noutra mais razoável – está à partida inquinado. Alguém acredita que os cidadãos vão votar em consciência? É preciso explicar o contexto desta interrogação. Alguém acredita que as pessoas vão queimar as pestanas a ler um texto (a Constituição) obtuso, labiríntico, maçador? As pessoas vão votar sem estarem informadas. Apenas fazem fé nas opiniões iluminadas dos fazedores de opinião (políticos ou comunicação social), com o risco adicional de que essas opiniões estejam enviesadas pelos erros comuns quando essas pessoas se põem a falar sobre a União Europeia.

O referendo à Constituição da União Europeia é uma falsidade de cima a baixo. Apenas um formalismo que pretende convencer as pessoas que a democracia se está a exercitar na sua modalidade mais nobre. Um erro total, um erro grotesco – o de convencer as pessoas que estão a exercer a sua liberdade, quando, no desconhecimento das matérias sobre as quais são interrogadas, opinam em consonância com as opiniões de quem se proclama informado sobre o tema. Uma liberdade condicionada, um sucedâneo de consulta popular.

Tenho lido algumas opiniões que verberam o cozinhado que permitiu a elaboração da pergunta impensável. Insurgem-se visceralmente contra este acordo por ilustrar uma subversão do espírito do referendo. Algumas dessas pessoas declaram-se favoráveis à Constituição da União Europeia, mas estão indisponíveis para a caucionar com o referendo absurdo que se está a preparar. Compreendo a sua revolta. Tenho, no entanto, dúvidas sobre o método escolhido. Desconfio que é um método desproporcional. Se são favoráveis à Constituição, rejeitá-la apenas pela inabilidade dos políticos nacionais é um exercício autista. É ignorar que a Constituição resultou do contributo de muitas pessoas dos vinte e cinco países que compõem a União. E que será injusto (e desproporcionado) ceifar a Constituição por uma inabilidade formal da classe política de reduzida qualidade que habita entre portas.

Não morro de amores pela Constituição da União Europeia. Acho-a excessiva na dimensão, um abcesso constitucional – as Constituições deviam ser aligeiradas, sem grandes devaneios de regulamentação, apenas contemplando os princípios gerais. Mas sou partidário dos avanços na integração europeia, desde que eles não corporizem uma centralização de poderes nas instituições da União Europeia. Acredito que a constitucionalização é um passo relevante para o aprofundamento da União Europeia. Porque não podemos perder de vista o significado histórico das Constituições: um contrato entre governantes e governados, através do qual os primeiros limitam o seu poder em relação aos segundos. Este é um resultado importante, em especial para impedir tendências de centralização que podem desvirtuar o espírito aberto da integração europeia.

Neste contexto, aceito a Constituição tal como foi concebida. Aceito-a como um produto eivado de defeitos, mas que não tem o defeito maior de me colocar contra ela como um todo. Chamemos-lhe um “mal menor”, um custo necessário para que o futuro da União não abra caminho a sucessivos atropelos às liberdades individuais por eurocratas anónimos sem respeito pelas especificidades locais. Com tudo isto em mente, coloco-me perante um dilema: o referendo é lamentável nas opções oferecidas.

Não me custa estar ao lado daqueles que censuram com veemência o cozinhado do bloco central, que assim quer empurrar de mansinho o rebanho fiel (nós, os eleitores) para uma resposta que eles acreditam ser a única possível – o sim. Por este caminho, estaria a votar “não” como manifestação de protesto contra a inabilidade, a perfídia de quem congeminou a pergunta do referendo. Ao fazê-lo, dou conta que vou contra as minhas convicções. Eis a matriz do dilema. Neste momento (e ainda faltam uns meses que podem facilitar o amadurecimento da decisão), só vejo uma solução para o dilema interior: não é votar não, mas não votar no referendo, como manifestação de protesto contra a manipulação da classe política.

22.11.04

Alcoviteiros dos divórcios

Quando um casal entra num processo de ruptura, mais do que falar devem saber escutar-se um ao outro”. Psicólogo (não fixei o nome) de um gabinete de consultores que faz acompanhamento a pessoas que entram num processo de separação.

A reportagem dera o mote: à medida que passam os anos aumentam os divórcios. Sendo situações de vida que trazem traumas, que afundam as pessoas em problemas psicológicos, nada melhor do que um gabinete de consultores que presta os seus serviços a quem esteja desnorteado, no meio de um doloroso processo de separação. O gabinete é composto por psicólogos e advogados. O acompanhamento garante-se nas duas vertentes mais requisitadas: dos danos causados na alma, a necessitarem de terapia de psicólogos; e das consequências materiais, onde pontificam os diligentes advogados.

Sinais da modernidade. Sinais de que a dependência do outro se intensifica com o advento de novos tempos. Onde antes estava uma dependência assente nos dogmas da religião, estão agora novas formas de dependência humana. As religiões atravessam crises, incapazes de chamar a si tantos fiéis como no passado. As pessoas parecem dirigir as suas dependências para outros níveis, dessacralizando essas dependências interiores. Entramos numa era em que actos corriqueiros da vida – pelo menos eram-no outrora – exigem uma co-participação. Já não basta uma iniciativa da pessoa de quem dependem esses actos (e a quem eles aproveitam). É necessário encontrar no outro um ancoradouro de partilha de responsabilidades.

Esta transmissão de dependências pessoais ilustra o mundo de hesitações que nos ata à indecisão. Perante conflitos de consciência, é cada vez mais difícil tomar decisões. Com a complexidade da vida moderna (ou não será isto apenas um pretexto para tornar difícil o que é fácil?), as decisões mais corriqueiras passam a ser dramas que prendem as pessoas ao império da indecisão. Somos incapazes de decidir, sozinhos, coisas banais. Temos que chamar os outros para se co-responsabilizarem dos nossos actos. É um movimento contínuo em que todos estendemos a mão às decisões dos outros. É a colectivização das hesitações que arrepia o caminho à colectivização das decisões pessoais.

A novidade dos gabinetes de acompanhamento em processos de separação é mais um paradigma da modernidade. Como viver o quotidiano é tão difícil, mais o é ainda a decisão que leva à ruptura de uma vida a dois. Há que procurar ajuda para fazer ver luz, como se as decisões de uma vida a dois se estendessem para a esfera de outrem, dos auto-intitulados especialistas. Como se fosse possível em poucas horas de acompanhamento colocar em cima da mesa anos de vida a dois. E, no entanto, os especialistas motivam os casais desavindos a socorrerem-se da sua prestimosa e milagrosa ajuda.

Sintomas da sociedade artificial, os gabinetes de aconselhamento pós-matrimonial (a designação é da minha lavra…) são um simples arremedo de negócio, uma forma de ganhar dinheiro com as indecisões tão fartas na vida moderna. Não acredito que possam ser grande ajuda, por mais que se esforcem em materializar os elevados conhecimentos saídos da psicologia (mau grado a elevada subjectividade que é um obstáculo a soluções padronizadas). Menos compreensível ainda é saber que anos de vida a dois podem ser desnudados perante desconhecidos, com o pretexto de se encontrar uma tábua de salvação para os descaminhos entretanto palmilhados. Seja para resolver uma vida a dois, seja para a salvar, custa-me a crer que as decisões que só competem ao universo do casal possam ser partilhadas com outros, por mais especialistas da matéria que se auto-proclamem.

Quanto às competências dos ditos especialistas, basta regressar ao mote deste texto: “Quando um casal entra num processo de ruptura, mais do que falar devem saber escutar-se um ao outro”. Esta é daquelas sentenças que dão o reconforto de se entrar no gabinete com uma mão cheia de nada e de lá sair com as duas cheias da mesma coisa. A menos que a minha compreensão para metáforas esteja hoje diminuída, alguém me consegue explicar como podem duas pessoas prescindir de falar uma com a outra para darem primazia a escutar o parceiro?

19.11.04

Olha para o que eu digo, não para o que eu faço: Terrakota e o multiculturalismo

O segundo dia do congresso que está a decorrer na universidade (colóquio internacional sobre África e Ásia “patrimónios partilhados”) encerrou com uma interessante iniciativa. Num exercício pouco convencional (e por isso louvável), a organização convidou alguns elementos de um projecto musical, os Terrakota. O projecto inspira-se na pureza dos sons tradicionais africanos para emprestar aos seus trabalhos uma originalidade que se afasta dos padrões da música pop dominante.

Os três músicos foram convidados a apresentar o projecto – a génese, as fontes onde beberam inspiração, os trabalhos já publicados, pormenores sobre os instrumentos tradicionais que obrigam a tempo de aturada aprendizagem. O discurso foi aqui e ali pontuado por preconceitos de gema: que o mundo obedece a uma formatação que não augura um futuro risonho, que os nossos ouvidos estão enxameados pela música plástica que domina a antena, que perdemos o fio à meada às origens genuínas dos sons, à sua matriz antropológica. A música que fazem é um refúgio da plasticidade que domina o mundo de hoje.

Percebi insatisfação em relação aos meios musicais convencionais. Das palavras dos músicos, sentia-se a necessidade de afirmação de uma estética alternativa que encontra as suas raízes na África profunda, nos meios rurais onde campeiam as sociedades tribais. Uma espécie de fuga às relações sociais artificiais que se constroem nos meios citadinos, mais ainda em países impregnados da ocidentalidade dominante que nos empurra para o mito do pensamento único, dos comportamentos padronizados. Uma estética de ruptura, dir-se-ia. Um apelo aos sons vindos da terra, moldados por instrumentos que são os altares sagrados do artesanato, a negação da sofisticação e da tecnologia.

As palavras que discorreram não tinham sido preparadas – nem se esperava que o fossem, ou a genuinidade da iniciativa esbarrava no paradoxo dos elementos plásticos que não combinam com a natureza do projecto. É compreensível que os pensamentos alinhavados tenham sido notas esparsas, sem linha de continuidade. Apesar de algumas confusões (a explicação mal conseguida da origem do nome do projecto), a mensagem passou com fluidez. Percebeu-se a raiz alternativa do projecto, na esteira do multiculturalismo tão em moda. O projecto tece pontes entre continentes tão diferentes e no fundo tão ligados por uma história comum. É uma porta de entrada das sonoridades tradicionais africanas no mercado europeu, uma janela entreaberta que nos convida a olhar para o outro lado, para o outro (o africano) que tem tanta riqueza para nos legar.

Depois das palavras, a música. Com os músicos viajaram alguns instrumentos tradicionais africanos. Não foi possível registar na memória os seus nomes, porque usam palavras de dialectos locais. Após uma interessante descrição da forma como eram construídos, e por quem eram tradicionalmente utilizados, os três músicos ensaiaram dois momentos de improvisação para mostrar a sonoridade dos instrumentos. Como se fosse uma jam session, tivemos direito a duas peças em que os sons crus e melódicos dos instrumentos ecoaram pelo auditório.

A encerrar a sessão, apresentaram uma amostra da música incluída nos dois álbuns já publicados. Primeiro num registo sonoro, depois num videoclip, dois temas que fizeram desabar a aura de encantamento que ainda pudesse existir para aqueles que prestam tributo ao multiculturalismo na sua acepção genuína. Depois de os termos ouvido dissertar sobre a busca incessante das raízes tradicionais africanas, de termos escutado como verberam a plasticidade da música pop que por aí vagueia, dois temas musicais que mostram as inspirações africanas mascaradas por uma roupagem pop. A decepção veio com o final da performance, juntamente com o aviso de que estava à venda, à saída do auditório, o seu espólio musical (o que não combina com a imagem de desprendimento anti-comercial que os músicos quiseram passar).

A desilusão veio do contraste entre o ensaio improvisado e as peças trabalhadas, com produção cuidada, que não ficam a dever aos métodos sofisticados (que eles disseram desprezar) utilizados na música ocidental. Sem surpresa: revelaram que o último trabalho foi gravado e produzido em Dakar, Senegal, nos estúdios de Youssou N’Dour – essa figura que se quer passar por expoente da world music, mas que não ultrapassa a mediania da sonoridade ocidental mesclada com alguns sons tradicionais africanos. Ao ouvir aquelas duas músicas do projecto (desconheço o resto), lembrei-me como um músico como David Byrne é mais genuíno com os seus trabalhos de miscigenação de diversas influências sonoras.

Ao sair do auditório, senti que tinha sido enganado. Depois do discurso, das digressões pelos lugares comuns de uma multiculturalidade que rejeita os “malefícios” da sociedade padronizada em que vivemos; depois do belo momento de improvisação musical com os instrumentos tradicionais; estava à espera que o som trabalhado em disco desse continuidade às mesmas tendências. Afinal, o discurso não era a representação da sonoridade construída, também ela tão plástica como a plasticidade criticada pelos músicos.

18.11.04

Estás magro!

Esta vida é cheia de contradições. Os gordos são apontados a dedo porque abusam da gordura, agora que ela já deixou de ser formosura. Os magros não escapam à preocupação social. Quem está magro deve estar doente. Pelo menos é a sensação que tenho quando sou abordado e, perante um olhar que mistura comiseração e preocupação, se solta um “estás tão magro”! Quando o diagnóstico é feito por pessoas mais idosas ele vem atrelado a um ar compungido. Como se do outro lado estivesse alguém que, aos seus olhos, padece de uma grave doença.

Esta é mais uma expressão de como gostamos tanto das meias tintas. Nem muito gordo, nem muito magro. A prova de que “no meio está a virtude”, para glosar um ditado que o povo usa com frequência. Nestes tempos modernos em que a figura exterior conta tanto, desprezam-se os seres balofos que ostentam a sua gordura. Os mais gordos são alvo de chacota. No outro extremo estão os magros, os finguelinhas quando a descrição é feita em ar do gozo. As peles em cima dos ossos, os músculos exangues, as olheiras e a cor macilenta, a cara encovada, um ar anoréctico que hoje é doença mais inquietante do que a obesidade.

Acossado pela curiosidade alheia, sentindo as abordagens preocupadas de quem desconfia de que o peso escasso significa maleita pela certa, lá me desdobro em explicações. Digo que não, que não estou mais magro. Que mantenho o mesmo peso há mais de dois anos. Que a linha que mantenho não é sinal de nenhuma das hipóteses sombrias que as pessoas esboçam nas entrelinhas da exclamação: nem fome, nem alimentação errada, nem anorexia, nem qualquer outra doença que impede as carnes de se tonificarem em vistosas protuberâncias. Aos mais insistentes, tenho que lançar mão do último argumento, em jeito de interrogação: se a magreza fosse sinónimo de doença, como conseguia manter o exercício físico com a assiduidade que levo há anos?

Não sei se será da palidez natural que deixa na pele uma cor nada atraente quando os raios de sol não lhe conferem um tom acastanhado. Não sei se é das olheiras pespegadas pelas poucas horas de sono (coisa que sempre tive em toda a vida). Não será por falta de vitalidade física: as pessoas que tantas vezes repetem que estou magro não testemunham alguém que arrasta o seu corpo extenuado pelas ruas. Se não é por nenhum destes sintomas, fica o mistério que não explica o diagnóstico que, com pesar, traçam com a precisão de um médico.

Ao ver as fotografias que me retratam após ter acabado os estudos na universidade, nesses anos de clausura (ou de comodismo, para ser mais rigoroso) em que o exercício físico era um nada que semeava o sedentarismo, revejo uma figura com mais sete quilos. A cara cheia, um ligeiro refego no pescoço, uma barriga bem proeminente que as roupas não conseguiam disfarçar. Também recordo como as análises sanguíneas davam valores que exorbitavam os limiares de segurança. Não ser fumador era uma escassa tábua de salvação para o sedentarismo, as diabruras gastronómicas (a pior de todas: deliciar-me com 250 gramas de chantilly enquanto via um filme na televisão), a ausência de exercício físico que tolhia as articulações e trazia os músculos enferrujados.

Treze anos passados, emagreci. Comecei a cuidar da saúde – já que ouvimos tantos apelos de cardiologistas para que façamos exercício para manter uma vida saudável. Continuo a ter desmandos gastronómicos, pois não me tentam as chamadas dietas saudáveis. Emagreci, mas sinto mais energia do que há treze anos. Pesam os cabelos brancos que vão, aqui e ali, dando uma nova tonalidade. Foi-se a inestética pança que assustava quando me via de perfil ao espelho. Na louca correria por encontrar o yin e yang das meias tintas (o tal meio que é a virtude), preferem-se vestígios de gordura a vaguear pelos corpos. Antes isso do que um corpo que quase deixou de ostentar sinais adiposos.

Serão reminiscências dos tempos do renascimento, em que as figuras retratadas por artistas como Rubens eram mulheres avantajadas, corpulentas massas de gordura. Apenas os resquícios dessa tendência para reconhecer na gordura alguma formosura, porque os excessos adiposos de outrora já não são tolerados. Uma barriguinha aqui, uma coxa robusta ali, uma cara cheia acolá, a isso há muita gente que não consegue dizer que não. Corpos enxutos, covis de doença!

17.11.04

A barbárie do ocidente

O cenário é de devastação. Horas após combates que deixaram um rasto de morte, o silêncio sobrepôs-se ao troar das armas. É a hora do rescaldo. Tempo para ver a orgia de destruição, contar os cadáveres que jazem perfurados pelas balas, numa contabilidade macabra que enaltece a superioridade sobre o inimigo. As tropas pisam o terreno com cuidado, para não serem surpreendidas por emboscadas de guerrilheiros que se escondem acobertados pelo silêncio.

Uma destas brigadas é acompanhada por um repórter de imagem da CBS. Entram numa mesquita onde estavam acantonados os rebeldes. Cadáveres e mais cadáveres, despojos humanos sacrificados em nome de ideais que outros, refastelados no conforto de gabinetes, inspiram. A câmara abeira-se de dois homens que estão inertes, encostados a uma parede crivada de balas e salpicada de sangue. Ao fundo da imagem ouve-se um militar dos Estados Unidos: “o cabrão não está morto. Está a fingir!” e dispara, à queima-roupa, a sangue frio, sobre um rebelde ferido e desarmado.

Náusea, é a reacção que me percorreu pelo interior. Por ver que a imagem oficial da civilização árabe que nos vendem – o desapego pela vida, pela própria vida e mais ainda pela vida dos outros – está bem impregnada na doutrinação do exército de um país convencido de estar num patamar de superioridade civilizacional. Dirão os mais incrédulos que não podemos misturar a árvore com a floresta, que se trata de um caso isolado, que em todos os ajuntamentos humanos há comportamentos desviantes. Dirão que aquele soldado, imerso na frieza de um acto desumano, será a excepção à regra do tratamento digno que as tropas da coligação internacional reservam ao “inimigo”.

Há razões para concordar. Mas há também a dúvida metódica que lança a interrogação: aquele episódio foi testemunhado por uma câmara, e as imagens difundidas para todo o mundo; quantas vezes casos semelhantes se terão passado na penumbra da opinião pública? Será tão linear aceitar que este caso é um desvio lamentável, uma excepção ao comportamento normal dos militares dos Estados Unidos e dos países aliados? Quem o pode afirmar com convicção, se não há provas do contrário?

O deslize foi um golpe de misericórdia na imagem que o exército dos Estados Unidos quer transmitir ao mundo. E para o próprio país, que tanto se orgulha da força militar que dispõe, afinal o esteio da sua superioridade na ordem internacional. Neste episódio, só por distracção de quem comandava a operação se pode acreditar que a captura de imagens fosse possível. Eis porque se trata de um deslize. Eis também porque fica um enorme ponto de interrogação a pairar: seria mesmo um comportamento excepcional, porque intolerável, ou corresponde à conduta normal daqueles militares?

O exército dos Estado Unidos não se livra da vergonha que vem chamuscar a reputação que acreditam ser inquestionável. Depois de Guntánamo, depois das cenas humilhantes da prisão de Abu Ghraib, agora a dúvida lançada pela oportuna câmara da CBS. São tiros a mais no próprio pé. Como se não bastasse, foi dada a possibilidade ao comandante do pelotão para dizer de sua justiça. Em vez de uma condenação enérgica, destoou. Falou mais alto a solidariedade corporativa. Num discurso carregado de tiques bélicos, o guerreiro de serviço tentou justificar o acto cometido pelo seu comandado. Ao ouvir este militar, tive o assomo espontâneo de o chamar “animal”. Retrocedi, porque não quis ser ofensivo para os animais.

Ainda temos que aguentar a retórica oficial de que a civilização ocidental é superior, que se distingue da civilização árabe. Porque estes vivem ainda mergulhados num estado de selvajaria que nós, ocidentais, já deixamos para trás com as brumas da memória. Só que a estupidez humana é transversal às dicotomias civilizacionais. Selvajaria há em todo o mundo, com diferenças de requinte e de grau. Injustificável é a insistência em fixar a diferença entre “eles” e “nós” fundada na apetência para a selvajaria.Se é verdade que todos os actos de selvajaria são criticáveis, mais o são aqueles que têm origem nos arautos da superioridade civilizacional. Esta superioridade supõe que a selvajaria foi varrida para debaixo do tapete. Mas, às vezes, o vento que sopra forte destapa o tapete, deixa à mostra a selvajaria latente que estava em hibernação. Nesse momento não há diferenças entre a selvajaria de ambos os lados.

16.11.04

Golpada no direito à privacidade: a morte do sigilo bancário decretada por Bagão Félix

Sessão de informação às bases, promovida em conjunto pelos partidos que nos governam. Às bases, mas com anúncio no jornal (publicidade paga), convidando os não militantes a estarem presentes. O ministro das finanças ia à Maia, quinta-feira à noite, para proferir uma prelecção sobre o orçamento de Estado para 2005. A imprensa foi convidada a estar presente. Esta, pressurosa, não podia deixar de corresponder ao convite.

A grande novidade (para quem, como eu, não se deu ao trabalho de ler o texto volumoso do orçamento para 2005) saiu da boca de Bagão Félix: o sigilo bancário vai acabar de vez. Não se trata de quebrar esta regra de ouro do negócio bancário apenas quando há investigações policiais – por exemplo, em crimes de colarinho branco ou de tráfico de droga. Está em causa o levantamento do sigilo bancário quando um contribuinte for alvo da perseguição do fisco por suspeita de não pagamento de impostos.

O Estado parece querer juntar-se aos gestores de conta dos bancos onde o nosso dinheiro está depositado. Exibindo a sua vocação paternalista – que, com a pose deste ministro das finanças, atinge um dos seus expoente máximos – o Estado surge, magnânimo, apaziguando os cidadãos. As suas garantias de que os dinheiros depositados à guarda dos bancos são bem aplicados aparecem reforçadas pela brigada de diligentes fiscais tributários que vem dar uma mãozinha aos gestores de conta. Pela minha parte, dispenso a fartura.

Dispenso-a porque esta inovação ilustra mais um passo para o Estado intrusivo que engorda com a passagem do tempo. Em vários domínios antes o Estado confiava na iniciativa dos particulares, nota-se uma infusão de legislação que corta pela raiz este espírito de auto-regulação. Teremos, de agora em diante, a incógnita a pesar sobre a cabeça: estarão as nossas contas bancárias a ser objecto de devassa pelo bando de fiscais tributários?

Bem sei que “quem não deve não teme”. O adágio popular não faz sentido nesta matéria. Eu não temo porque, infelizmente, não consigo fugir aos impostos. Nem tão pouco temo porque as movimentações bancárias que faço não revelam sinais de suspeita. Tenho razões para estar descansado. Mas não é isso que importa. Mais importante do que saber se temos motivos para temer a invasão do Estado às nossas contas, é o acto em si. O contrato bancário tem os seus alicerces fundados numa relação de confiança entre o banco e o cliente. As medidas que autorizem o rompimento do sigilo bancário são um rombo vigoroso nos alicerces do negócio bancário: não só para os bancos, que têm que abrir as portas às brigadas de fiscais que queiram passar a pente fino certas contas bancárias; mas sobretudo aos clientes, que gostam de ver na privacidade um bem inexpugnável.

É disto que se trata: de respeitar a privacidade que o dinheiro deixa à mostra. Os mais ingénuos insistem em ver no Estado uma entidade abstracta, sem rosto humano, como se os funcionários que o servem não fossem pessoas com motivações próprias. Estes funcionários não têm que saber onde gastamos o nosso dinheiro. Não importa aqui que “quem não deve não teme”. Tanto vale para as pessoas que fazem aplicações financeiras duvidosas, como para aquelas que fazem pagamentos com cartões de crédito para sustentar vícios licenciosos, como para as compras banais que todos fazemos. Independentemente do destino que damos ao dinheiro, o Estado não deve ter o direito de aceder a essa informação. Sob pena de estarmos todos sob suspeita, de a qualquer momento um funcionário zeloso e voyeur devassar a nossa intimidade.

Não fico sossegado em saber que os meus movimentos bancários são escrutinados por um burocrata qualquer. Que ele saiba que faço compras no supermercado Y, que compro roupa nas lojas Z e W, que compro livros através da Internet às editoras K e L. Inquieta-me saber que caminhamos para um modelo de sociedade que não hesita em fixar as bases de um sistema de vigilância apertado, em que acabamos todos por estar na mira das suspeitas. Uma sociedade em que estaremos todos a desconfiar de todos. Ora, como aprendi que quem desconfia não é de confiar, a medida de Bagão Félix é sintomática da confiança que ela (e o seu autor) merecem.

Para quem acusa este governo de “excessos de neo-liberalismo”, a decisão de acabar com o sigilo bancário é a sua antítese. Não vi as carpideiras de serviço, os que sempre se afogueiam quando suspeitam de derivas “neo-liberais”, a aplaudir a fobia persecutória de Bagão Félix. Três possíveis explicações para a ausência: ou andam distraídos, ou não lhes convém o aplauso, ou não sabem do que falam quando enxameiam os discursos com o “maléfico” neo-liberalismo.

15.11.04

Outra vez a intolerância da democracia

Um tribunal belga decidiu ilegalizar o Vlaams Blok, um partido de extrema-direita. Motivos: os discursos anti-imigração do partido, contrário à presença de estrangeiros no território belga. Como se não fossem suficientes as dúvidas acerca da legitimidade política desta sentença, ela é ineficaz: os mentores do partido ilegalizado podem manter todas as suas estruturas, apenas sendo obrigados a alterar o nome. Um obstáculo menor que não impede a continuidade do partido.

Um aspecto que importa reter é a falta de oportunidade da sentença. Não se trata de um grupelho de fanáticos que exibem toda a sua cólera radical (e mesmo que fosse, não vejo como pode a democracia ungir-se de legitimidade para o ilegalizar). O Vlaams Blok representa quase 25% do eleitorado belga. Potencialmente, um em cada quatro eleitores ter-se-á sentido ofendido pela decisão iluminada de um grupo de juízes. Se não fosse possível reconstituir o partido, esta sentença teria um efeito devastador. Tornaria aqueles 25% dos eleitores politicamente órfãos. Dir-se-ia que estes juízes, aureolados com uma consciência moral acima dos mortais, empurravam aquela franja do eleitorado para partidos “politicamente correctos”. Um frete da justiça à democracia, como se fosse esta a função de quem julga – e como se a separação entre justiça e poder político não fosse um alicerce do “moderno Estado de direito”.

Quando a democracia tenta afugentar partidos anti-democráticos com o beneplácito da magistratura, fico com as suspeitas ao alto. Não é verdade que uma das grandes virtudes da democracia contemporânea é o apelo aos valores da tolerância, à inclusão dos que são diferentes? Como conciliar esta retórica com uma prática que não hesita em espezinhar o direito à existência daqueles que são contra a democracia?

Pode-se argumentar que os democratas são impelidos por um instinto de auto-defesa. Sabem que os partidos extremistas (apenas os da extrema-direita, porque os da extrema-esquerda são benquistos) querem liquidar o regime democrático. A única hipótese de evitar o fim da democracia é tirar o tapete aos movimentos confessadamente anti-democráticos. Compreendo a lógica do argumento, mas não descubro grande diferença na latitude de intolerância quando comparado com os partidos de extrema-direita. Esta solução utiliza as mesmas regras de intolerância dos adversários.

Também sou capaz de conceber mais um argumento a favor da liquidação dos anti-democratas: as suas ideias são perigosas, atentam contra valores estabelecidos, contra os esteios das liberdades individuais. Esta é uma razão poderosa. As ideias dos partidos de extrema-direita são um cutelo que paira, ameaçador, sobre os valores devolvidos após as atrocidades da segunda guerra mundial (e, no caso doméstico, após a longe noite do Estado Novo). Aceito que muitas consciências se mostrem incomodadas com a recrudescência destes partidos extremistas, que parecem ignorar as lições tenebrosas do passado recente – ou que apenas interpretam a história à sua maneira, duvidosa, mas à sua maneira. Também me assustam essas ideias, mais os métodos que resvalam para a violência. Nada disso é suficiente para que a democracia tenha legitimidade para asfixiar esses movimentos. A menos que a democracia não confie no eleitorado, que o veja como um conjunto de pessoas onde ainda pontificam franjas intelectualmente desqualificadas ao ponto de apoiarem as causas da extrema-direita.

A abertura de espírito que dos livros aprendi ser a maior virtude da democracia surge ofuscada. Os que se situam fora da normalidade democrática não podem existir, não se podem submeter a votos (por cá os partidos fascistas são proibidos pela Constituição). Teme-se que o eleitorado seja atraído pelas ideias do passado. Melhor confissão de que os eleitores só são inteligentes às vezes não podia ser dada à estampa. Não há maior desrespeito pela vontade popular. Se mais e mais gente se sente atraída pela extrema-direita, será legítimo cercear as preferências dessas pessoas através da ilegalização do partido em que votaram?

A democracia, nas suas tentações totalitaristas! Uma democracia que apenas aceita partidos que respeitem os cânones da normalidade democrática é uma democracia amputada. É uma democracia inspirada na mesma intolerância dos que quer combater. Não é assim que deles se consegue distinguir. Apenas se confunde nos métodos.

Quando se pensava que a Europa da intolerância tinha fechado um ciclo com o que se passou na Áustria (quando os neo-nazis chegaram à coligação governamental, e quando os patéticos Guterres da Europa perderam o sono com a cenário dantesco da reimplantação do tenebroso nacional-socialismo por contágio vindo daquele país), novas excrescências vêm à superfície. Como se não bastasse a duvidosa legitimidade política da solução, alguém duvida que ela é destituída de inteligência? Ou será difícil adivinhar que esta sentença vai cerrar as fileiras dos partidários do Vlaams Blok, radicalizar o espaço político e, porventura, chamar novos apoiantes a este partido?

A justiça, na ânsia do frete à democracia, no limiar do precipício de disparar um tiro no próprio pé…

12.11.04

Roteiros gastronómicos

Quando puxava pela cabeça para encontrar tema para hoje, ocorreu-me escrever sobre o último CD dos Sigur Rós (Von, na verdade o primeiro álbum, republicado agora que a fama internacional chegou a este grupo de islandeses). De repente fui assaltado por uma nostalgia dos tempos em que um grupo de amigos percorria, religiosamente, os caminhos de um roteiro gastronómico feito ao sabor do acaso.

Eram tempos em que o tempo passava com outra velocidade. Tempos em que tínhamos tempo para cada um de nós, sem estarmos absorvidos pelas exigências da profissão que nos fez adultos. Não que fossemos irresponsáveis naquela altura. A idade da adolescência já tinha sido dobrada – estávamos todos nos “vinte-e-alguns”, formados, em início de vida profissional. As famílias ainda não tinham sido constituídas. As namoradas escasseavam, o que conferia outra margem de manobra que as exigências do coração impedem.

Eram tempos em que nada era programado. Apenas nos encontrávamos e, olhando uns para os outros, interrogávamos o que havíamos de fazer. Nesses tempos, em que ainda não ficávamos assustados quando líamos os valores das análises sanguíneas, tínhamos hábitos desregrados. Com frequência metíamo-nos nos carros e percorríamos quilómetros atrás de quilómetros ao encontro de restaurantes afamados, longe da nossa cidade. Afamados por constarem de roteiros gastronómicos publicados, ou por fazerem parte do cardápio de referências que passavam de boca em boca, chegando até um de nós.

Os quilómetros que galgávamos eram o património do convívio que se solidificava durante as viagens. O tempo que nos separava dos restaurantes era dedicado a conversas que nos faziam crescer, que intensificavam as cumplicidades, essencial nutriente da amizade. Esta cumplicidade assentava à mesa dos restaurantes. Sentar à mesa era sinónimo de outros prazeres: os visuais (sim, os olhos também comem), mas sobretudo os gustativos. Era com um prazer inaudito que degustávamos as iguarias que desfilavam diante de nós, um pouco por todo o lado.

De repente, e só como amostra, vêm à memória estes santuários gastronómicos: o Solar Bragançano, em Bragança, com a sopa de castanhas outonal, a posta à mirandesa suculenta, o serviço aprimorado do dono do restaurante, a música clássica como pano de fundo. As lulas com leite de coco e caril (o manjar chamava-se, apelativamente, Maracanã) num restaurante, que agora não recordo o nome, em Cascais. As costelinhas grelhadas no Álvaro, em Valença do Minho, regadas com as malgas de vinho verde que, ao início, tresanda a xarope mal amanhado mas que ia fluindo com ligeireza com a ingestão das ditas costelinhas. A vitela assada do Zé da Menina, em Fafe, num intervalo dos muitos ralis a que assistíamos na zona (onde uma vez esvaziámos um reserva de Borba de 1984 pelo preço da chuva – parece que os donos ignoravam a relíquia que estava perdida, algures, numa arrecadação). As idas ao Camelo, em Seia, em passagem para o habitual sku invernal na serra da Estrela, com o bacalhau com broa que na altura era opíparo (mas não agora, impregnado de gordura), o humor contagiante do senhor Jorge Camelo, e a deslumbrante sobremesa que nos era oferecida – um requeijão acabado de chegar do Sabugueiro, que se desfazia na boca ainda quente, misturado com um excelente doce de abóbora e amêndoa ralada.

Esta é apenas uma amostra que, ao correr da pena (melhor: ao bater das teclas…), salta da memória. Outros seriam os locais que preenchiam o imaginário de tempos idos em que a disponibilidade para estas andanças era diferente. É apenas um cheirinho dos odores, dos sabores, dos tintos aveludados, da boa disposição, das amizades que foram sendo nutridas entre os comensais. Um assomo de nostalgia, portanto.

A intenção do texto de hoje era escrever sobre Von, dos Sigur Rós. Acabei a deambular pelos caminhos ímpios da gastronomia, dos locais mais emblemáticos onde melhor se come no país. Depois de ouvir aquele CD dos Sigur Rós, a reacção espontânea é acabar a falar de comida, é ser levado pelo arrebatamento das excitações culinárias que alimentam a alma. Porque o último exercício musical dos Sigur Rós é tão desértico, tão vazio de sonoridades (pelo menos das que estava habituado), que por mais que ouça o álbum chego ao final com a sensação de que comprei gato por lebre. É como ir a um restaurante para saciar os irreprimíveis apelos gustativos e de lá sair com a frustração de que é urgente entrar no primeiro restaurante à mão para cumprir a tarefa. Daí a digressão gastronómica de hoje.

11.11.04

A novela Arafat, ou da queda da humanidade para a fabricação de mártires

(Este texto foi escrito antes de saber da morte de Arafat)

Tantas vezes o homem já foi dado como morto, e outras tantas ressuscitou do seu leito parisiense de morte, que parece ter atingido a condição sobre-humana dos predestinados. Coincide com a imagem que lhe construíram. Arafat tem atrás de si um rol de actos de impressionante bravura, à mistura com uma sorte que protege os audazes e anda arredia do comum dos mortais. A sua biografia confunde-se com uma hagiografia. Sobretudo para os seus apaniguados, para os que partilham da sua causa, dentro e fora de portas, Arafat foi a bandeira dos sacrifícios impostos aos palestinos em busca de uma terra-mãe negada pelas vicissitudes da ordem internacional.

Agora que está em agonia numa cama de hospital em Paris, Arafat concentra as atenções do mundo. Perdi a conta às notícias que davam conta do seu óbito, logo seguidas de desmentidos frisando que o “grande líder” ainda resiste. É a imagem de resistente, ainda e sempre de braço dado com Arafat, que o acompanha até aos instantes finais da vida. Uma imagem conveniente para alimentar as hostes que se revêem na sua causa. Uma imagem de uma pessoa que até na morte concita as atenções do mundo, aqui como tantas vezes pelas razões erradas.

O episódio da doença mortal de Arafat veicula a imagem de Arafat como mártir. Mais um mártir a enriquecer o relicário da humanidade. Feito de tantos mártires que pagaram com o preço da vida, e quantas vezes com a penosidade do sacrifício da dor que antecipava os momentos finais da vida, a intransigente e dedicada defesa de ideais. É destes heróis que a humanidade se tem alimentado ao longo dos tempos. A historiografia do ser humano é um rol infindável de mártires que deram corpo e alma, a posteriori, às bandeiras que hastearam em seu nome.

Esta tendência para construir mártires está presente ao longo da história e é transversal a confissões e ideologias, por mais antagónicas que sejam. Os romanos apedrejaram os cristãos, e daí surgiram vários santos. Durante as cruzadas cristãs, os que perdiam a vida em combate e se distinguiam pela bravura na difusão dos ideais religiosos tinham a comenda post mortem por decisão papal. Mais tarde a religião passou a estar enfiada nas vestes do carrasco, dando origem a outros mártires que tentavam libertar-se (e à sociedade em que vivam) do espartilho dos cânones da religião dominante. Os desmandos da inquisição, as guerras em nome de um deus maior, as perseguições acobertadas na intolerância religiosa – razões para inverter os planos, fazendo das vítimas da intolerância os novos mártires que mereceram consagração tardia.

Até certos sectores, heterodoxos no tratamento que dão à História, sectores que se tentam emancipar dos padrões de comportamento “normais”, não conseguem evitar a tentação de fabricar os seus mártires. Podem não ser santificados ou beatificados. Mas são, à mesma, sujeitos de culto, verdadeiros heróis que alicerçam as fidelidades dos apoiantes. Arafat inclui-se nesta categoria. É delicioso ver comunistas e outros apoiantes oportunistas da causa palestina a verter lágrimas de comiseração pelo inditoso destino do líder que vai lançando os últimos suspiros. Eles, como os que fabricaram santos no passado, irmanados na mesma forma de agir: um sujeito exterior, a âncora onde se prendem os esteios das ideologias que, por deferência, oportunismo ou genuína adesão, bebem a sua inspiração nos heróis que arregimentam as fidelidades caninas.

Faz-me espécie o oportunismo de quem santifica estes mártires fabricados a posteriori. Primeiro, pelo aproveitamento dos sacrifícios que trouxeram às pessoas alvo das elegias um final de vida insuportável. Será a compensação pelas agruras que os conduziram à morte num altar de martírio? Segundo, porque o cimento dos grupos que partilham as mesmas causas (independentemente da sua natureza) vive de uma heroicidade que se inspira nos males infligidos a outrem. Esse cimento vem de fora, de alguém que já não está entre os vivos, de alguém que por ter acabado a vida em sofrimento impensável congrega as vontades que confluem num mesmo sentido.

Se Arafat já estava, pelos parâmetros das biografias oficiais, num estatuto acima do comum dos mortais, imagine-se o que vai acontecer depois de passadas as lamentáveis cenas que envolvem a recta final da sua vida. Se fosse judeu, e israelita, não conseguia estar confortável com o que se adivinha para além da linha do horizonte…

10.11.04

A constipação

Ela pesa sobre a cabeça, sobre os olhos. Injecta um mal-estar que percorre todo o corpo. Parece um espartilho que emperra os movimentos, que empurra para a indolência. A constipação é o triunfo da indolência forçada. Ao tentar combater a preguiça involuntária que se apodera do corpo e da mente, o esforço é ainda maior. O que provoca as fricções brutais para sair da camisa-de-forças que é a constipação.

A respiração é difícil. O nariz entope-se, fazendo dos seres constipados sucedâneos dos peixes que, tal como os constipados, respiram pela boca. Os espirros sucedem-se. Ao menos algo de bom na constipação: os espirros. Quando o espirro se solta é a sensação de alívio que se segue que traz o bem-estar arredio em dias de constipação. Como se uma rolha tapasse os canais que permitem uma respiração normal, eles soltam-se quando o espirro sobe desde os pulmões, passa pela garganta e explode boca fora, lançando uma quantidade interminável de bactérias que poluem o ambiente.

A visão moderna da constipação: o seu impacto ambiental. Pode parecer estranha a associação: qual a relação de causa e efeito entre constipação e poluição do ambiente, perguntam os que foram apanhados desprevenidos. É o efeito de contágio. Quando alguém está constipado e teima em ir trabalhar – e quando o local de trabalho é pouco arejado, esconso, albergando várias pessoas debaixo do mesmo tecto, numa elevada densidade demográfica – o espirro de uma pessoa constipada pode ter um efeito devastador na saúde dos companheiros de trabalho. Ou quando essa pessoa se desloca até ao trabalho, dentro de carruagens apinhadas do metro, ou nos apertões de um autocarro que ultrapassou o limite de passageiros, um espirro é o adubo de constipações alheias.

É por isto que um pouco por toda a Europa civilizada (centro e norte, portanto) as pessoas não saem de casa quando apanham a mais ligeira constipação. É uma falta de civismo quando alguém teima em aspergir as bactérias contaminadas pelas pessoas que têm o azar de se cruzar com o constipado. Sobretudo nos locais de trabalho, esta prescrição é seguida à risca. Sendo povos mais disciplinados, a censura social dirigida contra constipados que continuam a peregrinação diária para o trabalho é uma censura áspera. De tal forma que se estabeleceu o costume de qualquer pessoa, quando acometida pelos sinais mais ténues de constipação, ficar resguardada em casa. Mais do que um rápido restabelecimento, quer-se impedir que a constipação de uma pessoa seja hospedeira da constipação que se dissemina pelos colegas de trabalho. Antes ter uma pessoa retida em casa por doença do que várias.

Por cá o costume não está enraizado. Ainda não compreendemos a lógica de contágio e os seus efeitos nefastos. Continuamos a ter vistas curtas: a constipação não dá lugar a descanso forçado para retemperar forças. Não chega a ser vista como doença. É preferível não enviar para casa quem está constipado, ignorando que mais tarde pode ser necessário enviar não apenas um mas vários constipados.

Enquanto vingar a ideia, teremos de ir trabalhar quando não estamos em condições para produzir o que estamos habituados. Somos trabalhadores manietados pela constipação que se apodera de nós. A indisposição que toma conta do corpo e do espírito é outro sintoma que devia convidar à ausência para pleno restabelecimento. Não só a motivação para produzir está em baixos níveis, como existe o risco dela se propagar, com o mau humor e as bactérias aspergidas pelos espirros sem fim, às pessoas em redor.

São muitos os malefícios da constipação. Um é a desinspiração. Com efeitos visíveis: para quem quer encontrar um tema de escrita para todos os dias da semana, a constipação traz a desinspiração temática. É o deserto de ideias que, em última instância, leva a perorar sobre a causa desse deserto de ideias – a constipação. À falta de tema, atchim!

9.11.04

O homem do realejo

Vindo do nada, um som enche um mar de recordações. Na quietude ruidosa das obras de um prédio que começa a nascer, o burburinho das máquinas que escalavram a terra deixa perceber, ao longe, um silvo conhecido. É o homem que se faz anunciar tocando um realejo, o cartão de visita para as pessoas saberem que ele está ali, preparado para reparar os guarda-chuvas que carecem de conserto.

Este som familiar, que já não escutava há largos anos, fez-me lembrar a avó materna a assegurar que “vem lá chuva” de cada vez que o homem andava pelas redondezas. Aprendi a associar este som com um chamamento de chuva. Talvez porque a função do homem é consertar os guarda-chuvas avariados, preparando-os para a função que lhes está destinada. A reparação do homem que conserta guarda-chuvas era, no imaginário popular, o prenúncio de que as chuvas já podiam chegar depois da ronda do homem. Ele era o guardião do nosso bem-estar, o salvador contra as gripes fermentadas em tormentas que nos apanhavam sem o guarda-chuva entretanto inoperacional.

Cresci, Outono após Outono, habituado a ouvir lá fora o assobio do homem do realejo. Era o anúncio da estação das chuvas que se aproximava. Todos os anos, a minha avó fazia o seu diagnóstico: o homem assobiava os ventos que, dias mais tarde, iriam trazer a desagradável chuva. Para ela, este homem era fautor do tempo tenebroso, da chuva inclemente que varria os descampados nas cercanias. Ao contrário dos índios que cultivam o hábito da dança da chuva para a chamar em tempos de estio prolongado, aqui o homem do realejo era o aviso de que a estação negra estava prestes a assentar arraiais. Por isso a minha avó dizia, com o ar de enfado, que o homem do realejo carregava consigo o insuportável fardo da chuva que o horizonte marítimo em breve deixaria transparecer, com as nuvens escurecidas batidas pelos ventos agrestes e húmidos com o perfume da brisa atlântica.

Estive anos a fio sem ouvir a cantilena do homem do realejo. Eis senão quando, de surpresa, voltei a escutar a melodia repetitiva. Mesmo sabendo que os avanços da tecnologia ajuízam o anacronismo da função. Os guarda-chuvas podem ser mais frágeis que no passado, mas são feitos de materiais tão baratos que é mais cómodo substitui-los quando se estragam.

Descompassado com a realidade, o homem do realejo prossegue a sua sina, andando pelas ruas à caça de clientes, perfumado com nostalgia do passado. Na esperança de encontrar alguém com saudades do passado que tenha, por milagre, um guarda-chuva danificado que não teve a desdita de ir parar ao lixo. Procura prender nos seus lábios os sons que imortalizam as imagens de um passado de que só restam memórias. O homem do realejo é um museu andante, um cadinho do tempo que ficou enterrado nas memórias.

Mergulhado nos afazeres da vida moderna, só pude deliciar o sentido auditivo com o silvo feito pelo homem do realejo. Ao início ainda senti um estranho apelo para sair de casa, perseguir as pistas deixadas pelo som do realejo. Para saciar a curiosidade e ver se o homem do realejo era um velho que se arrastava com lentidão pelas ruas, empurrando a sua traquitana onde compõe os guarda-chuvas que lhe trazem. Queria confirmar se era velho, se ele também estava ali a matar as saudades de um tempo que se ausentou nas brumas do passado.

Tive que resistir. As tarefas do presente, o afã da vida que nos empurra para a voragem do tempo que se consome num instante, mergulharam-me no presente. As exigências da vida destemperada que levamos são o suicídio do travo doce das recordações do passado transportadas desde um canto escondido do subconsciente. Para elas não há lugar senão nuns escassos momentos, porque a pressa de viver é inimiga da nostalgia piedosa.

8.11.04

A luta contra a fraude fiscal: ou da caça aos gambozinos

As variações semânticas no debate anual sobre o orçamento de Estado para o ano vindouro não são significativas. Hoje em dia parece unânime que a actividade do Estado não pode levar a um descontrolo das contas públicas, devido aos efeitos que se acumulam para o futuro e que ameaçam tornar essa actividade financeiramente insustentável. Dos cânones das finanças públicas contemporâneas faz parte a regra de ouro da contenção orçamental, que uns mais zelosos chamam disciplina orçamental. Já não são aceitáveis défices que quase chegam a 10% do PIB. Nem dívidas públicas exageradas, que oneram injustificadamente as gerações futuras.

O panorama de disciplina orçamental tem que ser contextualizado. De acordo com o pensamento dominante, ainda se aceita a possibilidade do Estado apresentar despesas superiores às receitas previstas. O défice é visto como um instrumento de política económica – ou, em homenagem à verdade, como uma afirmação da presença dominante do Estado na sociedade. Esta visão predominante fala de disciplina orçamental num sentido diferente do contemplado por uma escola mais radical, que gostaria de ver uma equivalência entre a expressão e a diminuição da presença do Estado na economia. Para os radicais, disciplina orçamental é sinónimo de impossibilidade de défices orçamentais, mesmo a ambição do orçamento oferecer um saldo positivo.

Devido à participação do país na União Económica e Monetária, sabemos que ter um défice superior a 3% do PIB envolve um elevado risco de nos serem impostas multas (hoje atenuado devido ao flagrante desrespeito da França e da Alemanha). Como somos um país pequeno, não podemos incorrer no luxo de esboçar um orçamento que, à partida, viole esta regra. Portanto, os governantes têm que alinhavar um orçamento cujo défice não rompa com o limiar dos 3% do PIB.

Olhando para as duas rubricas do orçamento, as opções para conter o défice orçamental são variadas. Pode-se pensar em diminuir as despesas públicas, o que significa emagrecer a presença do Estado. Pode-se antecipar um aumento das receitas públicas, o que exige um agravamento dos impostos suportados pelos contribuintes. Não será politicamente popular, porque ninguém gosta de pagar mais impostos – sobretudo quando a percepção geral é a de que a carga tributária é elevada para a qualidade dos bens públicos fornecidos pelo Estado. Pode-se ainda imaginar um acréscimo das receitas públicas sem envolver o aumento das taxas de impostos. Aqui o combate centra-se na luta contra a evasão fiscal.

Muitas interrogações emergem a propósito da fuga aos impostos: porque fogem os contribuintes aos impostos? Por acharem que as taxas são muito elevadas, traduzindo uma inadmissível intrusão do Estado na riqueza criada? Será apenas um esquiço do traço sociológico do português padronizado, que se tenta furtar aos seus compromissos quando eles envolvam sacrifícios para o seu bem-estar? Ou será apenas por necessidade? (Aqui penso nas empresas: por saberem que do pagamento de impostos resulta um encurtamento da margem de lucro que pode questionar a sobrevivência do negócio e a manutenção de postos de trabalho.)

É irónico concluir que, nestes casos, a evasão fiscal é um expediente necessário para evitar o aumento do desemprego. É cínico, logo hoje que é apregoada a doutrina do Estado orientado para as preocupações sociais; é cínico, agora que tantas vozes clamam pela criação de emprego como a prioridade da política económica. Vendo, afinal, que é o não pagamento de impostos que melhor alcança este objectivo. O que só demonstra que não é o Estado que consegue criar empregos. São as empresas. E se o Estado mantiver o seu afã de perseguir as empresas que andam a fugir aos impostos, tudo o que se consegue é aumentar o desemprego. Eis o paradoxo do frenesim fiscal quando o combate à fraude fiscal é elevado à prioridade das prioridades.

É lamentável que não haja coragem política para aplicar a medida mais racional: o corte nas despesas públicas. Teria a vantagem de permitir a redução dos impostos, logo sendo possível (pelo menos em teoria) a diminuição de casos de fraude fiscal. Daí, a diminuição de casos em que a “autoridade do Estado” é questionada. Muitos afiançam que as despesas públicas são “rígidas”, que é impossível cortar na factura das despesas que o Estado tem que pagar. Esta conclusão é uma simples petição de princípio, sem que haja um esforço sério para saber onde é possível cortar (e ao falarmos de despesas públicas, fácil é encontrar gastos sem explicação, benesses que são injustificáveis).

Na falta de coragem para intervir através das despesas, resta a opção de actuar mediante as receitas. Quando a opção é a de combater a fraude fiscal, fico com a sensação (reconfortante…) de que o Estado faz o papel do papalvo convencido que pode ir para o meio de um descampado à caça de gambozinos. Entra lá com uma mão cheia de nada e de lá sai com outra mão cheia do mesmo (a menos que os fiscais de impostos passem a ser o maior contingente de funcionários públicos…).

5.11.04

A vida é um rascunho?

Na vista de olhos diária pela imprensa, detenho-me nas colunas de opinião de alguns cronistas. Uns – poucos – pelo gosto que me dá a leitura da prosa, mesmo que esteja em desacordo na maior parte das vezes. Doutros discordo, e por isso os leio, por serem o fermento que me aguça uma visão alternativa do mundo. Às segundas-feiras, João César das Neves (JCN) é leitura obrigatória no Diário de Notícias, com a sua coluna intitulada “não há almoços grátis”.

Quando JCN escreve sobe economia, muitas vezes consigo concordar com ele. Sobretudo quando não descai para receitas que ressoam o Keynesianismo decadente, replicando a doutrina do seu mestre, Cavaco Silva. Outras vezes, JCN escreve sobre assuntos da alma e da fé. É nestas ocasiões, em que prega uma visão de beatífica ingenuidade, que não consigo aderir às suas ideias. Quando aparece com as vestes de pitonisa religiosa, sucedâneo dos clérigos emproados nas suas certeza dogmáticas que não deixam lugar a qualquer dúvida metafísica, chego ao final dos textos com a sensação de que JCN vive num mundo que apenas existe na sua cabeça. Ao ler esses textos impregnados de uma candura inexcedível, JCN retrata o mundo que ele diz existir mas que não passa de um universo que ele gostaria que existisse. Como dizem os ingleses, apenas um “wishful thinking”.

O derradeiro ensaio conhecido teve como título “rascunho da vida”. JCN surgia indignado porque alguém, bem mais idoso, disse “agora, que estou no fim da vida”. Interroga-se: “Como é que alguém pode contemplar directamente o fim de si próprio? Em síntese, JCN quer demonstrar que a vida é mais importante do que a morte. Até aí estou com ele, pois a morte é a negação da vida que levamos, efémera, até que essa esquina inexorável que é a morte não consegue ser dobrada. Mas JCN pega no assunto para ensaiar uma prédica carregada de optimismo católico. Um dos dogmas do catolicismo é a vida para além da morte. Estaremos na vida terrena de passagem, a cumprir uma tarefa temporária, para depois entregarmos a alma à vida eterna que vem com a despedida da vida terrena.

Não devemos encarar a morte com a angústia de quem não sabe qual o destino reservado para depois, avisa JCN. Porque, apesar de convivermos com o lugar comum de que a morte é a única coisa certa que temos na vida, conclui que “esta frase, tão usada, é completamente falsa. A única certeza da vida é a vida. Desde que nascemos que a nossa existência nos aparece com toda a evidência inelutável da certeza. Falam-nos da morte, vemos a morte, mas o que sentimos, a única coisa que sentimos com segurança, é a vida.

Fiquei na dúvida se JCN tinha inflectido as suas posições tão típicas de um catolicismo arreigado. Seria uma exibição de um acto de sagração da vida, da vida terrena que não é tão valorizada como a vida eterna pregada pelos dogmas da religião católica? Não demorei muito tempo a tirar a limpo as minhas dúvidas. Aproximando-se do final da crónica, JCN toca no ponto sensível: “só há uma maneira de conciliar tudo o que sabemos sobre a vida. A única forma de entender o que somos é que esta vida seja um rascunho, um esboço preparatório, um ensaio. No final, (o rascunho) será abandonado, quando a obra definitiva for passada a limpo. Não faz sentido que a vida, o dom mais precioso do mundo, tenha fim. Mas, sendo tão precioso, é lógico que tenha ensaio. Cada dia, com alegria, estou mais perto do fim do rascunho da minha vida.

Ou seja: andamos, na vida que conhecemos, naquela de que temos provas inelutáveis, apenas a preparar o terreno para a existência eterna que nos é trazida com a chegada da morte. Não posso deixar de ficar preso à etimologia da palavra: olhar para a vida como um rascunho é como aceitar que a “obra final”, a edificação da nossa essência, será visível quando nos despedimos da vida terrena. Não será uma perda de tempo, mas esta vida é uma sucessão de experiências, uma estrada sinuosa com acidentes que alteram o percurso, uma inclinada ladeira em que vamos ultrapassando – umas vezes bem, muitas vezes mal – os obstáculos que surgem pela frente. Sabendo que só depois, quando a morte tira a vida para trazer outra forma de existência (a que é ininteligível), cumprimos o nosso destino.

É uma questão de fé. Como questão metafísica que é, as convicções são difíceis de discutir. Não me interessa saber se JCN tem razão. Ele terá a razão que a sua consciência, que a sua fé, lhe dita. Para quem anda arredio das andanças da fé, há que convir que este discurso deixa mais dúvidas do que certezas. Para um agnóstico preso à ditadura do racionalismo, é impossível embarcar nesta “história da carochinha” contada por JCN. Para quem olha para a morte com a terrível angústia de que é o ponto final, de que depois vem um vazio que corresponde à extinção da existência, não é reconfortante ler estas palavras impregnadas de fé. Nem tão pouco acredito que estas pessoas, no instante final da vida, quando se esvaem os últimos suspiros que levam ao encerramento dos olhos para todo o sempre, que adormeçam com o sossego de que estão a partir para outra dimensão.

4.11.04

Da maldade (ou do perverso gosto das derrotas de que quem está nos antípodas)

Parece que desta vez a “maior democracia do mundo” (não sou eu que o afirmo…) não vai ser palco do triste espectáculo de há quatro anos. Parece que há um vencedor anunciado, apesar de todas as cautelas exigidas pela complexidade do sistema eleitoral norte-americano. Vamos aturar George W. Bush por mais quatro anos. A Europa, descontente, reabilita-se da ressaca. De tanta fé depositada no candidato anti-Bush (porque não eram adeptos entusiastas do abúlico Kerry), a Europa das causas militantes, de braço dado com as esquerdas carpideiras da desgraça, não sabe onde depositar as lágrimas que a tristeza da derrota não pôde lavar.

Para quem esteve tão envolvido em eleições que não eram as suas, o empenhamento foi notável. Sei que há quem seja da opinião que estas eleições dizem respeito a todos os que se interessam pelo andamento do mundo. Se os Estados Unidos são a única super-potência, se não hesitam no exercício de um papel paternalista que quer trazer segurança ao mundo, todo o mundo tem uma palavra a dizer. Se não pode ser através do voto – nem todos temos capacidade eleitoral activa para votar em eleições alheias – que seja através da voz de protesto que tenta influenciar quem deposita o voto.

Fui testemunha do debate que se fez por cá, Portugal e Europa, entre os apoiantes de ambos os lados. Fui apreciando a intensidade dos argumentos trocados, das acusações e contra-acusações. Como se estivesse em causa a honra beliscada, sempre que a dama preferida era atingida pela artilharia pesada dos opositores. Ambos os lados se perderam em estéreis discussões. Por um momento fui levado a acreditar que “éramos todos norte-americanos”.

Eu não sentia esta condição, nem por indirectos reflexos. Estou consciente das diabruras dos Estados Unidos na política externa. Sei como este país pauta a sua conduta pela incoerência externa, ora alinhavando uma posição agora, ora mudando bruscamente de opinião e de aliados. Sou crítico, fortemente crítico, do papel desempenhado por este país (não apenas a administração Bush, todas as demais) no mundo. Estou entre aqueles que vêm no intervencionismo militar norte-americano uma causa da crispação que fermenta a hostilidade acérrima dos opositores deste país, tantas vezes com estúpidos actos de violência gratuita. Nada disto é suficiente para ter uma inclinação a favor deste ou daquele candidato. Olhando para o passado, intriga-me como há quem se entretenha a tentar encontrar diferenças entre os candidatos rivais. O passado é o património da linha de continuidade (com ligeiras nuances) quando os partidos rivais se sucedem na condução dos destinos do país.

Não sendo cidadão daquele país, não me assiste o direito de preferência por um dos candidatos. Fartei-me de ler e escutar opiniões bem pensantes: “se fosse votante, eu votava…”, era a expressão lida e ouvida até à exaustão, sobretudo nos últimos dias. Como se estas opiniões fossem importantes na contagem dos votos…

Tudo isto não me impede de manifestar um gozo particular quando assisto ao desnorte dos que apostaram Kerry. Um apoio que mais parecia um presente envenenado: não era Kerry que apoiavam, era Bush que queriam destituir. Foram estes que não hesitaram em sentenciar, do alto da sua elevada craveira intelectual, que quem vota em Bush é intelectualmente diminuído (Vital Moreira disse-o com todas as letras). Foi esta azáfama em destronar o “palhaço de serviço” que me traz agora o doce sabor de ser espectador das mágoas carpidas.

Confesso uma certa maldade: estou-me nas tintas para quem ganhou a eleição. É a diferença entre Farinha Amparo e Farinha Milanesa – um doce a quem descobrir a diferença. A maldade está em ver as baratas tontas, os habituais entusiastas das causas politicamente correctas, os que se acham acima do comum dos mortais, desorientados, sem saber o que fazer ou dizer após a derrota com que não contavam. Delicio-me com o desvario, o desgosto, a angústia que caustica esta gente.

Tenho que o afirmar uma vez mais, para que não restem dúvidas: não simpatizo, nem um pouco, com o inquilino da Casa Branca. Não me custa subscrever as críticas às opções políticas da administração Bush. Mas arrepiava-me ver a certeza das convicções, a versão moderna do filme que faz o dualismo “bom-mau”, como se tudo fosse reconduzido a categorias estanques. Com estas certezas, com o dom da verdade aspergido por estes mensageiros divinos, algumas vezes apeteceu-me ser apoiante do outro que eles queriam destituir. Mesmo não simpatizando com ele.

Por isso a malícia percorre-me por dentro, exultante com o desgosto destes profetas da verdade. Terrível sentimento, sentir bem-estar com a tristeza dos outros. É certo. E não estariam eles a pedi-las?

3.11.04

Taxista com cara não escanhoada pode dar multa

O mau hábito de ficar a par do que se passa no mundo à hora das refeições traz surpresas. Na maior parte das vezes são desagradáveis, a atestar pela inclinação da comunicação social para divulgar as coisas más que acontecem no mundo. Desta vez fiquei atónito com uma notícia digna do Jornal do Incrível: em S. Pedro do Sul, um taxista foi multado por um zeloso elemento da GNR por não ter a barba feita. Inconformado com a decisão disparatada, o taxista reagiu contra a prepotência policial e apresentou recurso em tribunal. Que lhe deu razão.

Quando sou confrontado com acontecimentos bizarros como este, pergunto o que mais estará para vir. Parece que a imaginação humana quer fazer a vontade aos que apregoam a sua infindável fertilidade. Quem poderia pensar que existe uma qualquer norma que exige aos taxistas barba feita? Alguém poderia imaginar que o legislador português se deu ao trabalho de produzir legislação a regulamentar este aspecto comezinho?

De acordo com a notícia, o tribunal deu razão ao taxista porque a lei invocada pelo agente da GNR apenas se aplica aos quadros do exército e de forças policiais. O episódio traduz uma de duas coisas: ou o agente se equivocou no alcance da norma, acreditando que ela se aplica a todos os profissionais no exercício das suas funções, tal como se aplica a ele e aos seus colegas; ou trata-se de um caso de manifesto abuso de poder, a concretização de uma maleita nacional que leva a exageros – o que eu chamo o “complexo de farda”, que empossa de poder, ainda que momentaneamente, pessoas que nunca se viram dotadas dessa prerrogativa. Como o poder é efémero, há que extrair todo o poder até ao tutano, nem que para isso se descambe para abusos de poder.

Há quem diga que os abusos de poder são uma sequela do regime repressivo que findou em 1974. Teoriza-se que os agentes da autoridade e as forças militares ainda não se desprenderam dos tiques autoritários que eram uma muleta necessária do regime ditatorial. Não subscrevo a análise. Creio que se trata de algo congénito, de um elemento incrustado na substância do português típico. Como não gostamos de ser espezinhados por quem exerce qualquer forma de poder, quando é chegado o momento do poder cair nas nossas mãos deslumbramo-nos. Aproveitamos ao máximo o tempo escasso em que o poder está retido nas nossas mãos para o exibirmos de forma ostensiva. Daí até às situações de abuso de poder vai um pequeno passo.

Lembro-me de um episódio que se passou comigo, há cerca de dez anos, em que quase fui vítima de um abuso de poder de um polícia de segurança pública. Estava parado num semáforo, à espera do sinal verde. Quando arranquei, do outro lado um polícia atravessava a rua. Acelerei de propósito, porque o sinal estava vermelho para ele e verde para mim. Ele reparou, terá considerado um desrespeito e sacou do apito dando ordem de paragem. Esbaforido, exaltado, acercou-se de mim e com modos ríspidos exigiu os documentos. Perguntei-lhe porquê, pois não era obrigado a mostrar os documentos sem que ele me desse uma razão. Disparou a pergunta:

- Não sabe que quando um peão começa a atravessar uma rua tem sempre prioridade?

- Ó senhor guarda, ripostei, mesmo quando está sinal vermelho para os peões?

- Claro, não se lembra das regras do código da estrada? Vá lá, quero ver os seus documentos para o autuar.

Com tranquilidade, deixei-o tirar as notas que queria. Preparava-me para me despedir dele, para lhe dizer que teria todo o gosto em o encontrar em tribunal. Preparava-me para o desafiar a provar em tribunal que estava certo, estava à espera de lhe dizer que não acreditava que nenhum juiz tivesse a mesma interpretação imbecil que ele estava a dar ao código da estrada. Foi aí que ele me perguntou a profissão. Servi-me dos anos perdidos a estudar direito, do tempo que me sacrifiquei a fazer o estágio de advocacia, para logo de seguida decidir que não era esta a profissão que me faria feliz. Respondi: “advogado”.

A prepotência caiu-lhe queixo abaixo, como se alguém tivesse tirado o chão debaixo dos seus pés. Amansou a voz, despedindo-se de mim:

- Vá lá, desta vez passa, mas tenha cuidado!

Nem me dei ao trabalho de levar o caso mais longe. Vi nesta frase de despedida a confissão de alguém que tinha começado mal o dia e precisava de se servir da sua farda, abusando do poder que o cidadão normal não tem, para sacrificar um qualquer incauto que se atravessasse no seu caminho. Esta frase, em jeito de despedida, era a confissão implícita de quem tinha errado e estava admitir o abuso de poder que tinha tentado cometer. Por uma vez na vida, os anos passados a estudar direito e o estágio de advocacia tinham revelado utilidade. Foram o capital de respeito que estava a ser espezinhado por aquele polícia mal disposto. Outra fosse a formação, e talvez tivesse que me reencontrar com o polícia em tribunal. Nem imagino que prova distorcida iria forjar para se safar da situação problemática em que se estava a meter.

É por isso que não confio na polícia. Ao ver o que se passou em S. Pedro do Sul, é fácil perceber que há muitos agentes de autoridade que não têm a imparcialidade necessária para exercerem as suas funções. É fácil resvalarem para o abuso de poder, colocando a função policial longe das garantias de segurança que são exigíveis.