18.10.04

A primeira carta da Leonor

Hoje tomo a vez do meu pai. Anda cansado, meio atarantado com a emoção de me ter visto nascer. Por isso hoje estou a substitui-lo. Para me apresentar ao mundo. Para mostrar o que senti quando deixei o aconchego da barriga da minha mãe.

Estranhei quando me tiraram lá de dentro. Passei nove meses protegida, num ambiente que me dava conforto. Não tinha que fazer nada senão crescer. Agora ouço-os dizer que tenho que me alimentar de três em três horas, de quatro em quatro horas, ou quando me apetecer. Há algumas palavras que estou a aprender desde que vim ao mundo. “Alimentar” é uma delas. Enquanto estava fechada dentro da minha mãe, nem sequer dava conta que comia. Só sabia que à medida que os dias iam passando o tamanho ia aumentando.

Deixar de ter espaço para me movimentar. Pararam as acrobacias que gostava de fazer nos primeiros meses. De repente, dei uma cambalhota e passei a andar com a cabeça ao contrário (é o que diziam os meus pais e o médico que me via de mês a mês). Eu achava estranho quando os ouvia dizer isto. Tinha lá a noção do sítio para onde devem estar virados pés e cabeça… Só quando me empurraram para fora da barriga da mãe é que compreendi. Melhor: surpreendi-me, porque aquelas pessoas, umas vestidos de azul, outras de verde, estavam ao contrário, com a cabeça para cima e os pés assentes no chão.

Foi um choque quando uma mão indiscreta me foi buscar onde eu estava tão sossegada. De repente fiz um esgar que soltou um choro audível. A luz intensa era confusa para os meus sentidos. Os cheiros eram tão diferentes dos que estava habituada. Aqueles barulhos que, sei agora, eram as vozes dos meus pais, ecoavam pelo meu ouvido com uma estridência aflitiva. Não consegui reprimir a voz de protesto – mas o meu pai que esteja sossegado, não sou dessas contestatárias de que ele nada gosta…E se às vezes ando de punho fechado, ele que fique descansado: é apenas o instinto, querer sentir-me mais confortada, como se ainda sentisse a necessidade de procurar uma concha como refúgio. O refúgio que me tiraram naquele sábado, já a tarde ia longa.

Não gostei dos primeiros momentos daquilo a que se chama vida. Senti saudades do remanso da barriga da minha mãe, do calor que me aconchegava. Em vez disso, a luz que me perturbava os olhos, um calor mais seco que vinha de umas lâmpadas que me aqueciam. E tinha que respirar, puxar pelos pulmões. Aprendi que tinha que o fazer para não asfixiar. Como a vida cá fora é tão diferente da vida regalada que tinha na barriga da minha mãe!

A estranheza dos primeiros minutos da vida exterior foi aumentada pelas tropelias que me fizeram. Um senhor e uma senhora meteram tubos pelo nariz, pegaram em mim de trás para a frente, carregaram, pressionaram, mediram, pesaram. Eu ia chorando, exibindo o meu protesto, reclamando que me devolvessem à tranquilidade de onde tinha sido resgatada. Mas já não havia nada a fazer. Sentia, com a passagem dos minutos, que me estavam a preparar para a mesma vida que as outras pessoas levavam há anos.

Depois de vestida pela primeira vez, o meu pai levou-me até junto da minha mãe. Quis sentir o seu afago, ser tocada pelos seus dedos da mesma forma que, momentos antes, o meu pai tinha feito. Comecei a ficar mais agradada com a vida cá fora. Senti conforto ao ser tocada pelos meus pais. Foi um dos primeiros sentimentos que aprendi: carinho. Parece que é o que os pais dão aos bebés sem cessar. Quando me fui sentindo acarinhada, comecei a perceber que cá fora até é melhor do que o sossego do ventre da mãe.

Aprendi outro sentimento, o maior que me fez vir ao mundo: amor, o muito amor que transborda dos meus pais e que me alimenta mais do qualquer leite que me queriam empurrar garganta abaixo. A vida, cá fora, até é boa!

2 comentários:

Anónimo disse...

Boa Leonor!
Vejo que és mais optimista do que o teu pai.

Bem vinda a esta vida!

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

E pensar que tudo começou com um espermatozóide e um óvulo...

Vê se trazes um pouco de juizo aos teus pais, Leonor!
A Joana riu-se a olhar pra ti a nascer! Acho que ela gostou de te ver!
Pelos caminhos de Portugal, iremos ter contigo!
CP