25.10.04

Mar bravio

As primeiras tempestades de Outono trazem os ventos de sudoeste soprados com violência. Tudo se revolve no ar – as folhas e os galhos que se desprendem das árvores, deixando-as desnudadas; o lixo que se acumula com o descuido das pessoas. No que se convencionou chamar “mau tempo”, encerram-se imagens de uma beleza inexplicável. Contemplar o mar quando o vento se faz sentir em toda a sua fúria é uma dessas imagens que ficou guardada na minha retina, depois de quase trinta anos naquela que foi a minha casa, em todo este tempo em que acordava com vista para o rio e para o mar. E em incontáveis passeios pedestres à beira-mar, desafinado os ventos que me empurravam para onde não queria ir, ao sabor da chuva que tombava com inclemência.

Agora que o quadro bucólico não visita a paisagem que se espraia diante dos meus olhos, tenho me deslocar para poder espreitar o Atlântico que adormece nas praias da cidade. É um lugar de inspiração, onde o mais recôndito da alma encontra revigoramento. Sobretudo quando o “mau tempo” se instala por uns dias e decide empurrar a chuva e o vento contra a cidade, num abraço do qual ela não consegue escapar.

As vagas alterosas revolvem-se umas nas outras. Com a agitação que o vento imprime ao mar, ele transtorna-se e ganha uma cor acastanhada. Sinal da fúria em que se encontra, vomita ondas gigantescas que se encapelam para tombar, com estrépito, sobre o mar que nunca é chão. Acercando-me da linha que divide o areal da água, consigo ser salpicado pelas gotículas marítimas que andam à solta, empurradas pelo vento desordenado, vindas das águas transtornadas que lutam para chegar à areia. Diria que lutam com impaciência para se estenderem no areal, extenuadas, depois de horas sem fim de solavancos em alto mar.

Há ondas que desfalecem contra as rochas, criando um fulgurante mar de espuma que as abraça. Estas rochas servem, ano atrás de ano, de ancoradouro que absorve o impacto das ondas bravas que têm pressa de chegar a terra. Muitas estatelam-se contra as rochas, as vítimas necessárias da violência dos elementos. Na linha do horizonte, os navios que se aproximam do porto balançam ao sabor das ondas errantes. Mesmo estando ao longe, não é difícil ver a oscilação que os traz numa dança ritmada, para-cima-para-baixo. Um rebocador sai do paredão, aventura-se no mar. A espaços, parece engolido pelo estampido das ondas que vão altas. Uns segundos de angústia bastam para a habituação: por detrás da opacidade trazida por uma onda mais alta, lá surge o rebocador que caminha, indomável, rumo à sua tarefa.

É recompensador o espectáculo do mar que se mostra na sua rebeldia. Testemunhar a desordem causada pelo vento selvagem, como podem as rajadas de vento trazer as vagas de fundo que fazem do mar um espelho quebrado, um lençol desarranjado que se volteia de lado para lado, caótico, numa harmonia que entra pelos olhos do observador. Cumpre-se o destino da bonança. Atrás do estio chega o momento da tormentosa estação que transporta as primeiras sementes da invernia. O vento que assobia, furioso, e o mar que ameaça com a sua impetuosidade destruidora, são a antítese da bonançosa estação que chegou ao fim.

E como é belo perder algum tempo a contemplar a encenação das ondas que se sucedem na sua fúria avassaladora! Como é intrigante imaginar os efeitos devastadores daquelas bátegas de água salgada se alguma alma intrépida ousasse entrar mar dentro. O efeito da água que se espalma contra o paredão insinua os efeitos mortais da aventura. E daria postais ilustrados com mais valor do que mil palavras.

O mar castanho transforma-se numa cortina de espuma alva que se abate nas gastas rochas molhadas do paredão, com a lenta velocidade da água que se desfaz em pequenas gotas. Como se fosse o retrato do que há-de vir, horas passadas sobre a intempérie: outra vez a acalmia, o mar que vai perdendo a sua ruidosa raiva, um mar que se amansa num assisado emudecimento. As nuvens são varridas pelo céu azul que deixa o sol a descoberto. O vento vai fustigar outras paragens, dando uma trégua que traz de novo o “bom tempo”.

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