8.10.04

George W. Bush: o melhor candidato para as esquerdas militantes

Deve ser dos imperativos de consciência que as levam a uma intervenção social e política activa. Deve ser por rejeitarem o papel de “consciência mundial” que os Estados Unidos não se cansam de apregoar. Por qualquer destes motivos, ou por outros insondáveis, as esquerdas domésticas andam empenhadas na campanha eleitoral das presidenciais norte-americanas. Chegando ao limite de defender a ideia obtusa de se abrir o sufrágio aos cidadãos dos outros países, tal a importância que os Estados Unidos têm na configuração da política mundial (Vital Moreira é um dos que defendem esta ideia que está para além da vanguarda).

Numa coisa estou de acordo com estas esquerdas cheias de causas militantes: mete-me espécie o protagonismo dos Estados Unidos, as tendências unilaterais que fazem da sua política externa um imenso oceano de equívocos e incoerências. Fico perplexo com a desfaçatez com os que norte-americanos surgem aos olhos do mundo, fazendo e desfazendo a seu bel-prazer, sem necessidade de prestar contas ao resto do mundo. Sinais dos tempos, de uma ordem mundial unipolar, sem que a única super-potência se auto-constranja pelo receio de outra super-potência rival. O caminho fica livre para as autoridades norte-americanas fazerem do mundo o seu recreio privativo, o balão de ensaio para estratagemas militares de duvidosos contornos.

Nisto estou de acordo com estas esquerdas que babam espuma sempre que fica a jeito arremeter críticas contra os Estados Unidos. Onde já vamos por caminhos separados é na importância atribuída às eleições presidenciais norte-americanas. Há quem defenda a seguinte ideia: pelo papel exercido pelos Estados Unidos, ninguém de bom senso pode ficar alheio à campanha eleitoral, ao sentido de voto que permite ao colégio eleitoral designar o futuro presidente dos Estados Unidos. Discordo da ideia. Podemos ter preferências pessoais, ideológicas ou de outro género – nas eleições dos Estados Unidos, como em qualquer outro país. Mas não passam de preferências pessoais ou ideológicas. Se não aceitamos que os estrangeiros votem nas nossas eleições (fora dos casos excepcionais já admitidos pela União Europeia) também não podemos pretender interferir nas eleições de outros países.

Ainda da última estadia em Inglaterra vem à memória uma reportagem passada na televisão sobre as movimentações no terreno dos mais variados grupos que se alistam na facção republicana e na facção democrática. A certo momento entrevistaram um patusco inglês que bramia com entusiasmo a sua rejeição a Bush Jr. Quando foi desafiado a explicar as razões do seu activismo numas eleições em que não pode votar, o espécime falou do alto da sua razão inquebrantável: é um imperativo de participação social de cada pessoa que não passa ao lado do que ocorre no mundo. Daí a sua luta contra Bush.

Contra Bush. Esta é a palavra de ordem. Lembro-me, há um par de meses, da inefável Ana Gomes ter discorrido longamente sobre a convenção do partido democrata que designou John Kerry para candidato à presidência. Ainda excitada com o que lhe foi dado a assistir como convidada, não hesitou em lançar a palavra de ordem que a motiva como uma importante e poderosa apoiante de Kerry: o ABB, “anything but Bush”. A sigla é ilustrativa do que conduz gente como esta a interferir onde não é chamada. Qualquer coisa serve para derrubar Bush. O que eles não querem é que Bush continue a ser presidente dos Estados Unidos. Desgraçado Kerry: não deve ser confortável olhar em seu redor e constatar que muita da gente que o diz apoiar apenas está contra Bush. Não são seus apoiantes genuínos. O ABB diz tudo: é Kerry, como podia ser um condutor de autocarros de Nova Iorque, ou um homem do lixo de Chicago, um dandy de Los Angeles, ou um herdeiro da onda grunge de Seattle.

Bush não é flor que se cheire, bem sei. E há o anedotário que encerra Bush numa imagem de estupidez, de ignorância, que quase é património da humanidade. É-me indiferente que ganhe o senhor A ou o senhor B. É um problema que apenas diz respeito aos cidadãos dos Estados Unidos. Porque, pela experiência do passado, sendo eleito o candidato democrata ou o candidato republicano as linhas motrizes da política interna e externa não oscilam muito. Estou a adivinhar os entusiastas adeptos de Kerry e virem a terreiro com a sua inflamada verve anti-americana se o mesmo Kerry vier a ocupar a presidência, conduzindo uma política que não há-de ser muito diferente da actual.

No fundo, estas esquerdas que andam tão afadigadas com o que não lhes compete deviam reconhecer que a eleição de Bush até lhes é mais conveniente. Sendo militantemente anti-americanas, a tarefa fica facilitada se os Estados Unidos tiverem na presidência um presidente pateta e com escassez de inteligência. Sempre podem humilhar os dons ausentes do presidente e do país que tanto odeiam. Se Kerry não está destituído dessas faculdades, é mais problemático ridicularizar os Estados Unidos. E daí não sei: talvez então se agarrem ao aspecto fantasmagórico de Kerry (as suas semelhanças com Drácula não escapam a observadores mais atentos a estas coisas…) para continuarem a zurzir com violência contra o país que detestam.

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