4.10.04

Amor quixotesco

Aguardava, numa espera de quase uma hora, por ligação de comboio entre o aeroporto de Londres Gatwick e Brighton. Com o tempo típico das ilhas britânicas a dar os primeiros sinais do Outono que já se instalou no calendário, aguardei dentro do aeroporto. Aproveitei para queimar tempo lendo qualquer coisa em inglês. Ao longe vi uns lugares vazios. Sentei-me ao lado de um indivíduo, jovem, barba por escanhoar, roupas do Woodstock de tempos idos. Nas proximidades só estava aquele jovem esguio, sentado, perna cruzada, a falar ao telemóvel.

A conversa desenrolava-se em espanhol. Dei algum espaço – uns três ou quatro bancos – para cuidar da privacidade (a minha e a dele). A distância não era suficiente para que evitasse escutar a conversa. O jovem espanhol não deu conta da minha aparência latina, pois continuou a conversa que foi indo pelas veredas da emoção. Porventura terá acreditado que eu vinha de um qualquer país onde a língua espanhola é incompreensível. Por isso continuou, sem hesitações. Ele conversava com alguém que ainda tinha por namorada. Mesmo que tenha percebido, pelo sinuoso diálogo mantido, que do outro lado estava uma mulher que não tinha a mesma certeza.

Alguns minutos depois assegurei-me dos nomes: David e Clara eram os protagonistas do enredo de que era testemunha involuntária. Por vezes David elevava a voz, quando sentia que Clara não estava a ter uma postura construtiva. Percebia que David procurava agarrar-se a toda a paciência que conseguia encontrar. Como uma tábua de salvação para a relação que se estava a esfumar, como se essa paciência fosse o fogacho de luz que ainda o trazia agarrado ao amor que entrara no domínio da miragem. David viera de propósito de Madrid para ver Clara. Qual D. Quixote dos tempos modernos, em busca da sua Dulcineia, olhando para a esperança de salvar um amor que ele nutria com obsessão. Do outro lado da conversa, alguém estava imersa em dúvidas de um sentimento que já se teria extinto.

Havia uma terceira pessoa envolvida. Um triângulo complicado, a toldar as esperanças de David. Ele persistia na defesa do seu sentimento, enfatizava vezes sem conta que ele era a melhor solução. O espanhol revelava uma tenacidade fora do comum. Repetia até à exaustão que tinha embarcado na aventura imperativa de vir de Espanha até Inglaterra para a tarefa homérica de apenas ver a pessoa de que gosta. Um pequeno nada tão impossível, pois a missão era repetidamente negada nas respostas encontradas do outro lado do telemóvel. David disse, já com a voz embargada, que se tinha convencido que não regressava a casa sem estar, uns minutos que fosse, com ela.

Fiquei impressionado com a persistência, a coragem relevada pelo jovem espanhol que fez as malas e veio até tão longe para tentar salvar o amor. Ao início não consegui deixar de reflectir no que tinha acabado de observar. Poucos são os que conseguem ir buscar energias ao mais recôndito dos lugares e reunir a coragem que de David era o paradigma. Quantos teriam o desassombro de apanhar um avião e vir ao desconhecido, sem garantias de alcançar o objectivo? Vir à aventura, na esperança de que não se vai perder de vez a pessoa tão querida. E, ao mesmo tempo, ver como um amor pode ser doentio – e sendo doentio, deixar de ser amor para passar a sentimento a precisar de cura.

É a questão de sempre: diz-se que o amor é entrega desinteressada, dar tudo de nós à outra pessoa na espera de que a correspondência de sentimento faça de nós pessoas mais felizes. David era a expressão de como o amor era a cura para si mesmo, mas não para a pessoa que ele queira que ainda mantivesse por ele o mesmo sentimento. Ele não se cansava de acentuar que era a melhor solução para Clara; no fundo, apenas a confissão de que essa era a melhor solução para ele. Um amor exangue, pela reciprocidade que se extinguira. Um desespero que tomava conta de um sentimento que, preso pela enxurrada de emoções, era tomado de assalto pelo equívoco.

Então dei conta do ridículo que se havia apoderado do jovem espanhol. É verdade que a espontaneidade dos espíritos leva as pessoas por caminhos irracionais, que é fácil ser-se dominado por reacções que não encontram explicação a não ser no império da emoção. O amor não tem lugar para anacrónicos quixotescos, levando um dos amantes ao risível, fragilizando-o, tornando-o numa pessoa exposta e divorciada da razão. Ou isto, ou o amor-próprio que se dilui num perigoso nada.

(Em Brighton)

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