16.9.04

Uma fronteira difícil: discussão serena ou peixeirada vergonhosa?

Se há coisa que me mete espécie é assistir a “debates acirrados” entre correligionários de uma certa causa que discordam em aspectos pontuais. Se estão irmanados pela mesma causa, porque aquecem tanto os espíritos se as desavenças se resumem a pormenores que não beliscam a fidelidade de todos perante a nobre causa? Acontece onde haja facções diferentes que se digladiam pela detenção do poder. Quantas vezes estes debates são mais inflamados do que discussões mantidas com adversários de outras causas? Quantas vezes a arena política reproduz confrades ou camaradas de armas em punho prontas a disparar à mínima excitação?

O inevitável PS é a demonstração do que acabo de referir. Sempre que há mais do que um candidato a disputar o trono emergem discussões estéreis pontuadas pelo ataque pessoal e soez, pela chicana política. Quando sou apanhado desprevenido e imagens e sons da campanha dos três candidatos invadem a minha tranquilidade, fico intrigado com o belicismo que por lá acampou. Até parece que se esqueceram de combater os partidos adversários, tão entretidos andam com a disputa do poder interno. Claro, será apenas um hiato. Ultrapassado o congresso que irá vitoriar um deles, virá o tempo de concentrar as energias nos adversários. No entretanto, deitam-se uns aos outros que nem machos da mesma espécie que disputam uma fêmea com o cio.

Há quem diga que esta discussão é salutar. Que o contrário seria pior – por exemplo, o unanimismo dos pétreos comunistas. O desafio é encontrar um equilíbrio entre a abertura de espírito que patrocina a troca de ideias e a peixeirada que vinga quando os pontos de vista se extremam e falta espírito olímpico para tolerar opiniões diferentes. Muito se fala de novas modalidades de democracia, enriquecidas pela participação dos cidadãos em debates que se querem abertos e plurais. Seria uma forma de envolver os cidadãos na governação (ainda que das discussões possa não nascer luz para as decisões tomadas). Uma modalidade vanguardista para ultrapassar as limitações da representação parlamentar, mergulhada numa crise indisfarçável.

A ideia merece aplausos. Permitir a discussão em fóruns abertos, convencer os políticos à exposição diante de um público ávido em debater e questionar – contém, como disse antes, os predicados do enriquecimento do regime político. Mas há sempre um porém a toldar as virtudes que, cristalinas, surgem pela frente. Porque há quem não se saiba comportar numa discussão. Quem tente subverter as regras do jogo. Seja logo à partida, para condicionar o rumo dos acontecimentos em seu favor; seja a meio do jogo, quando a discussão não evoluiu favoravelmente. Há quem se esqueça das regras da boa educação. Outros confundem o direito à participação com intolerância em relação aos que deles discordam. É fácil a confusão instalar-se em fóruns abertos como estes. No rescaldo, em vez da discussão fazer luz, ela adensa a escuridão. E desmobiliza aqueles que querem participar de forma construtiva, porque não encontram incentivos para embarcar num jogo que é pervertido pelos que o querem monopolizar.

Como é tão difícil encontrar o equilíbrio. Quem sabe se por impreparação das pessoas, pouco habituadas a terem um local onde possam expor as suas ideias e criticar opções. Ou será mais estrutural, uma tendência inata para o Homem se deixar cair na confrontação verbal que atinge o limiar da violência traduzida no insulto fácil?

Depois há as sequelas difíceis de apagar. Sei que depende de cada pessoa, da sua capacidade de encaixe. Uns conseguem, passado pouco tempo, ultrapassar as feridas de uma discussão que passa os limites do empolgamento. Noutros, a ferida permanece aberta durante muito tempo – o tempo suficiente para que a discussão seja evitada doravante, para impedir que a ferida ainda não cicatrizada abra mais ainda, e para impedir que outras feridas surjam como a consequência de novas desavenças. Seja na política, na profissão, na vida pessoal, para os que têm menor capacidade de esquecer o passado (não digo de o perdoar), o capital de desconfiança acumula-se e limita o terreno para a troca de ideias, para uma relação que devia valorizar o bom que é confrontar ideias diferentes sem o preconceito de querer sair vitorioso da refrega.

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