23.9.04

Expressões idiomáticas que soam mal: “a minha mulher”

Não que se trate de uma expressão típica da língua portuguesa, porque noutros idiomas também é corrente. É uma simples expressão enraizada nos hábitos das pessoas. Homens e mulheres, indiferentes, usam-na sem perceberem o alcance contido naquelas singelas palavras. Os homens não se importam da recorrência da expressão. As mulheres, quem sabe se resignadas a um passado de subalternização sexista que lhes foi imposto, acomodam-se. Algumas com contentamento, ignorando o verdadeiro teor da expressão no que ela contém de possessivo, de manietação da sua liberdade individual, da subordinação perante o comando do homem-chefe-de-família.

Soa-me mal escutar “a minha mulher”. Curiosamente, já não tanto assim “a minha namorada”. Talvez exista uma coerência para a diferença de tratamento. Uma namorada não traduz um estado de permanência, como se espera que aconteça com o matrimónio (bem sei, bem sei, esta durabilidade é muito relativa nos tempos que correm). Ter uma namorada, mesmo quando há entre as pessoas envolvidas aquilo a que se convencionou chamar um “compromisso sério”, não transporta as mesmas consequências de perenidade. Como as coisas estão, atestar que as namoradas vão e vêm como o vento (e com o vento…) faz cada vez mais sentido. Daí que não doa tanto ao ouvido escutar “a minha namorada”.

Outra é a música que ressoa aos ouvidos com a agridoce expressão “minha mulher”. Metade é feita da recompensa interior de se saber amado por alguém, e de ter a certeza que dentro de nós irrompe o mesmo sentimento por outrem. Esta a origem da doçura da expressão. Que encontra um travo agreste, vindo do significado mais profundo de se utilizar o termo “minha”. Se escutar a expressão sempre me arranhou o sentido auditivo, dizê-lo causa-me mais engulhos. Tento dizê-lo e as palavras soltam-se entorpecidas, num esforço que contraria a espontaneidade com que a expressão devia ser soletrada.

Não me consigo rever no simbolismo possessivo trazido à superfície quando se diz “a minha mulher”. Este é o problema: ler na expressão a tradução de um sentimento de posse que não faz sentido. Talvez seja deformação que vem dos tempos da universidade, quando a contra-gosto estudei direito. Lembro-me de ensinarem, creio que em direitos reais, que a posse não é um conceito muito distante da propriedade (não será tão extenso, mas garante praticamente as mesmas regalias). É isto que me custa na expressão “minha mulher”. Sentir este possuir alguém, como se o sentimento que cimenta a união trouxesse prerrogativas tão largas. Como se alguém se hipotecasse nas mãos do consorte, fosse este o fiel depositário do seu destino.

Dir-me-ão que não devo levar à letra a expressão. A semiótica ajuda a contornar a dislexia que a expressão provoca. Ainda assim mantenho a ideia: há um obstáculo mental que me traz um enorme desconforto ao usar a expressão. Enobrece mais tratá-la pelo nome próprio. Já que não o perde, é o sinal que veio consigo à nascença. A identidade que uniu num determinado momento, a origem de uma cumplicidade que semeou outros sentimentos.

Ver num mero formalismo (o contrato do casamento) o pretexto para alterar o estatuto, para deixar cair o nome próprio que é tão bom pronunciar, é subverter a preciosidade das palavras e o virtuosismo do sentimento. Sem contar que perpetua o marialvismo dominante que teima em não se desligar do meio em que vivemos. Haverá algo mais dignificante, para um macho que se preze, do que ostentar com orgulho que uma mulher é sua posse? E consentir que as próprias mulheres se dobrem perante tamanha manifestação de superioridade amesquinhada (apesar de algumas delas usarem da mesma moeda, avisando a concorrência que aquele é “o meu homem”)?

Há confusões que emergem e que estão na origem desta perturbação das palavras. Mistura-se a fidelidade conjugal com um sentimento de posse cravado nas palavras que afirmam “a minha mulher”, “o meu homem”. Porque outra forma de ler estas palavras, através da sua reconstrução, é dizer “este homem é meu”, “esta mulher é minha”. Como se a posse subitamente começasse a invadir os domínios da propriedade. De uma propriedade que não se pode consentir quando falamos de relações entre pessoas com a sua individualidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Já me debati com o mesmo dilema.
A ideia da posse de alguém é assustadora. Sejam quem forem os possuidores e os possuídos, mais cedo ou mais tarde a relação acaba por deteriorar-se.
Só que a semântica não ajuda. Como é que podemos referir-nos à pessoa que partilha connosco a sua vida a outros que não a conhecem e a quem o seu nome não a identifica? Uma ex-colega de trabalho referia-se ao marido como "aquele senhor que vive lá em casa"!
Para mim, o maior problema da ideia de posse do companheiro é que o possuidor se desleixa na relação. Inconscientemente começa a pensar que, tal como tudo o resto que possui, o outro vai estar sempre ali à disposição. Como um livro ou um par de sapatos. Há quem encontre nesse sentimento uma certa segurança, mas muitos encontram uma prisão.
Outra vertente engraçada, é a da relação pais-filhos, onde também se usa a expressão "meu/minha". Será que filhos e pais se pertencem mesmo mutuamente?
Food for thought...

CP, pelos caminhos de Portugal

PVM disse...

CP:

Concordância total – até com a extensão aos filhos, mais um bom exemplo para reflectir.
Como bem dizes, a semântica é traiçoeira. Só resta desligarmos da palavra e empregar a expressão, sabendo que neste contexto “meu/minha” não corporiza nenhum atrelamento possessivo. Mas que soa mal ouvir, e mais ainda dizê-lo, lá isso soa!

Paulo