13.9.04

Eis o socialismo do primeiro-ministro

O primeiro-ministro fez-se à viagem até Castelo de Vide. Foi no Alto Alentejo, no encerramento de algo chamado “universidade de Verão do PSD”, por entre jovens aspirantes a um qualquer tacho na administração do Estado, que deu a boa nova. Na sua pose de fim-de-semana – blazer, camisa com dois botões negligentemente abertos, nada de gravata, pose desportiva – o primeiro-ministro tirou uma ideia brilhante da cartola: taxas moderadoras diferenciadas consoante as possibilidades económicas de quem utiliza o serviço nacional de saúde.

A medida pode ser vista por dois ângulos de análise. O primeiro é o que se escora apenas na dimensão externa da medida, ou seja, na mensagem que o líder do “PPD-PSD” pretende enviar. Acusado de representar a pior excrescência do populismo, corporizando a facção mais “liberal” (na pior acepção do conceito, o erroneamente usado pelos detractores do termo) do “PPD-PSD”, Santana Lopes não pode perder de vista uma acção política feita de sinais que desmontem os fantasmas a que está associado pelos seus opositores.

Nada melhor do que congeminar uma medida que, em tese, agrada aos que são mais sensíveis à “justiça social”. Pois não faz sentido que os mais endinheirados paguem mais quando recorrem aos hospitais públicos? Venha o estafado “os ricos que paguem a crise”. Pode valer simpatias e votos entre o centro político que anda desconfiado da aliança com o tenebroso Portas do fascizante CDS-PP, bem como entre a esquerda moderada e distraída sempre atraída pelas causas de que Robin Hood foi percursor há séculos. Um certo perfume de socialismo exalado pelo primeiro-ministro, ele que sempre manifestou a sua profunda admiração por Sá Carneiro – que bem próximo estava da “social-democracia” pura do centro e norte da Europa, nada distante de certos dogmas socialistas. Talvez isto explique a sedução de Santana pela ideia; talvez seja apenas um expediente para tirar o tapete à oposição e aos argumentos que ela encontrou para diabolizar o actual governo.

A outra forma de interpretar a medida é a de olhar para o seu conteúdo. Tentar avaliar os efeitos úteis da medida. À partida, uma pequena observação: como seria verificável a capacidade de rendimento dos utentes do serviço nacional de saúde? Pela declaração de rendimentos? Teríamos que andar com a declaração de rendimentos ao pescoço? Seria um elemento fidedigno, se são comuns as desconfianças acerca da fiabilidade do IRS para exibir o rendimento real de quem foge com mais facilidade dos impostos?

Mas as incoerências não se ficam por aqui. Se o serviço nacional de saúde é pago com os impostos, em princípio os que possuem rendimentos mais elevados já terão sido chamados a um contributo maior. Se quiserem tirar partido do serviço nacional de saúde (o que pode ser duvidoso, como adiante será referido), serão chamados a pagar um preço diferenciado que os penaliza uma vez mais.

A ideia até pode ser tentadora, sobretudo para aqueles que não se cansam de apregoar o ideal da justiça social. Sempre estigmatizados pela existência de desigualdades de riqueza, olham com desconfiança para quem gera riqueza e tentam, pela via de impostos que são uma nacionalização do suor empregue no nosso trabalho, forçar os mais ricos a distribuir em favor dos mais pobres. Já estamos habituados a viver numa sociedade em que a mediocridade compensa. A redistribuição de rendimentos pela via fiscal é uma demonstração viva.

O problema da ideia do primeiro-ministro é que os ricos raramente se servem do serviço nacional de saúde. Logo, a eficácia da sua proposta reduz-se a quase nada, porque as pessoas mais endinheiradas recorrem a hospitais privados ou deslocam-se ao estrangeiro quando necessitam de cuidados de saúde. Os nobres propósitos sociais de Santana Lopes vão por água abaixo. O governo até pode concretizar as taxas moderadoras diferenciadas. O que duvido é que a ideia produza os efeitos práticos esperados: aposto que as taxas moderadas cobradas serão, largamente, o resultado dos utentes que frequentam os hospitais públicos – as pessoas com menores rendimentos.

Mas o que importa é a mensagem veiculada – mais uma vez, o invólucro, sem importância para a substância. Fica no ar a ideia de que há sensibilidade social no governo, mesmo que o efeito útil da medida se reduza a nada. Mas isso é um simples pormenor. Porque entretanto temos um governo que dá passos largos para consolidar o socialismo em que vivemos. Ao mesmo tempo, aqueles que tão preocupados ficaram com a hipótese de Santana Lopes chegar a primeiro-ministro podem ficar descansados: ele inclina-se mais para o lado de quem o criticou, com este socialismo que se destapa aos poucos.

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