27.7.04

Os gatos vadios

Pela manhã bem cedo, os três gatos vadios que habitam a minha rua saltam do esconderijo para o exercício matinal. Vêm em grupo, ainda entorpecidos pelo sono nocturno. Aproveitam a quietude própria da hora matinal para circular na rua. Sem pessoas por perto, sem carros a calcorrear os paralelos, os gatos espreguiçam-se. Dão pinotes quando os pássaros esvoaçam nos voos que trazem consigo a alegria da manhã.

É curioso como três gatos que não são da mesma ninhada têm um sentido de vida em comum tão impregnado. Mais interessante se torna quando o gato é conhecido pela sua independência, pela propensão para uma vivência que rejeita a comunidade. Dizem os estudiosos que o gato é um animal solitário. Tendo uma noção arreigada da exclusividade do território, o gato repele todos os outros gatos que ousam invadir a coutada que ele delimitou. A socialização do gato dá-se quando, atraído pelo cio da gata, lhe faz a corte até à estocada final. O espírito familiar está ausente nos gatos, e mesmo as mães apenas acolhem as suas crias até sentirem que elas precisam da orientação maternal para se manterem vivas.

É por isso que me espanta o espírito de comunidade dos três gatos que por aqui andam. Não sendo irmãos, adoptaram-se uns aos outros. Fico embevecido ao olhar as suas brincadeiras. Como se engalfinham uns nos outros, soltando uma patada inocente que desafia o companheiro para uns momentos de brincadeira. A investida faz-se com uma aproximação provocante, com uns passos ágeis que se transformam numa corrida alucinante que é logo seguida pelo gato desafiado. De súbito, uma mudança de direcção deixa o perseguidor surpreendido. Os gatos param para recuperar o fôlego. Repete-se a aproximação. Perante a desatenção de um dos gatos, o outro acerca-se do cachaço e mordisca-o para se repetir o ritual da brincadeira. Saltam um sobre o outro, num bailado esquisito pintado pelas orelhas dobradas para trás, em sinal de uma fúria saudável que os empurra para a dança que se passa diante dos meus olhos.

Entretanto, um barulho estranho prende a sua atenção. Param, por um momento, o bailado em que estavam imersos; o ruído pode ser sinal de perigo. Com um movimento lesto da cabeça dirigem o olhar para o local de onde veio o ruído. O terceiro gato junta-se, como se os três sentissem que estão mais protegidos se se defenderem em conjunto da possível ameaça. Segundos volvidos fica a garantia que aquele ruído estranho, que só os seus delicados ouvidos conseguiram captar, não representa ameaça alguma. É momento para voltar a descomprimir, chamando de novo a salutar loucura que anda de braço dado com estes gatos. Repete-se o quadro circense que me deleita. Até que, cansados do exercício, os gatos desinteressam-se da luta desenfreada que protagonizavam.

Chega, entretanto, a pessoa que os alimenta. No seu pequeno automóvel – daqueles que não carecem de carta de condução – aproxima-se num ritmo lento, com o barulho típico da carburação do pequeno motor do veículo. Os gatos estão familiarizados com este ruído, conhecem o automóvel. Sabem que a chegada deste carro significa o pequeno-almoço que os sacia depois de horas de jejum. Desatam numa correria atrás do carro, com as suas caudas espetadas na horizontal, empunhando a felicidade de quem está prestes a encher o estômago de iguarias trazidas pelo generoso homem.

Ele para o carro e demora-se por uns segundos. Para desespero dos gatos, que cercam o carro e soltam miados clamando pela comida que não pode esperar. Por fim o homem sai do carro e é ver os gatos, num atropelo, a quererem conquistar a sua atenção. Enroscam-se nas pernas do homem, quase o levando à queda. Com ternura, ele leva a mão ao dorso curvado dos gatos, depositando algumas carícias de forma aleatória. À distância posso adivinhar o ronronar de alegria que irradia dos gatos.
 
O homem pega num saco que os gatos sabem que contém o alimento que é ansiosamente esperado. Dirige-se para dentro do terreno que ele cultiva com dedicação, seguido pelos gatos que, em fila, caudas ao alto, se perdem da minha vista para a degustação das iguarias que os mantêm bem nutridos.
 

4 comentários:

Anónimo disse...

Ora aqui está um bom exemplo que demonstra porque é que uns conseguem ser felizes e outros nem por isso. Uns conseguem ver beleza nos factos mais (aparentemente) banais, outros estão eternamente à espera de coisas muito especiais para atingirem essa mesma felicidade.
O teu texto de hoje faz-me recordar aquele tipo no "American Beauty" com o filme do saco plástico a voar com o vento. Há tanta coisa bela à nossa volta que deveria inspirar sentimentos bons...
A beleza está na forma como vemos/sentimos e não no objecto da nossa atenção.
Obrigado por nos recordares isso.

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Este estar em comunidade até em muitos animais é sentido e vivido. Não sei se ainda existe em muitas das sociedades ditas modernas pelo nosso Mundo Humano. Como estamos a perder as nossas raízes mais remotas.
Batido

Anónimo disse...

Eu cá a mim me parece... que mereceria mais a pena determo-nos no homem que alimenta os gatos vadios, do que nos gatos arredios mas não pensantes... NÃO PENSANTES!!!... o homem sim, pensante.

Anónimo disse...

Para o Ponte Vasco da Gama (se o felino o permitir): um dia dei por mim a observar um saco de plástico voante; tinha, aliás, uma inscrição que me era muito familiar; e também me lembrou a Beleza Americana;... não eram nada bons sentimentos. Imagino que o que o Vasco da Gama quisesse dizer seria, tão só, «nostálgicos pretéritos sentimentos». Melhor será que voltemos aos gatos!!!... BOa NOite!