8.7.04

O trono

Frequentar ginásios é saudável para o físico. E por vezes também o é para a mente. Sobretudo em banhos turcos – pela relaxação que se consegue naqueles dez minutos de descanso final, após o suor desgastado no ginásio. Ainda que haja um factor aleatório: as pessoas que partilham o banho turco. É o mesmo factor aleatório que me afasta de pacotes turísticos do género “férias em grupo”: nunca se sabe quem vai calhar na rifa. Ao menos no banho turco o sacrifício é passageiro, não dura mais do que dez minutos.

Em muitas idas ao banho turco já apanhei conversas variadas, na maior parte das vezes “conversa meteorológica” – apenas para romper o silêncio, sem que haja substância e interesse na conversa. Também já deparei com sapiências doutorais, que dissertam com convicção sobre assuntos que ultrapassam a ligeireza com que são abordados. Análises políticas reaccionárias, dislates homofóbicos, até algumas tiradas racistas. As inevitáveis conversas sobre o futebol são um must. Por capricho da geografia, invariavelmente apanho com os fanáticos adeptos da colectividade azul e branca, incapazes de fazer interpretações lúcidas de um jogo de futebol.

Recentemente um destes diálogos ensinou-me algo que desconhecia. Quase posso dizer, utilizando o aforismo socrático, que é por estes episódios que se conclui que “só sei que nada sei”. Duas pessoas conversavam sobre os hábitos quotidianos. O que mais gostam de fazer ao longo do dia. Quantos cafés tomam e a que hora. Quantos cigarros fumam. A que horas almoçam. A certa altura um dos comparsas desviou a conversa para “o trono”. Uma conversa que até então se tinha revelado sensaborona, com traços de “conversa meteorológica”, despertou então a minha curiosidade. O que seria o trono?

Só comecei a perceber o significado metafórico do trono quando um deles disse que o pequeno-almoço tem um efeito catalítico que o leva imediatamente ao trono. O outro replicou que as reacções químicas no seu organismo que o levam ao trono só se desencadeiam depois do café matinal, tomado na empresa. O primeiro admitiu que gosta de prolongar as estadias no trono, aproveitando a ocasião para pôr alguma leitura em dia. O seu amigo revelou o estranho hábito de estar “sentado no trono” enquanto fuma um cigarro.

Desta troca de palavras compreendi finalmente que o trono é a sanita onde evacuamos. Eis como uma conversa que era desinteressante acabou por se revelar proveitosa. Aprendi uma expressão idiomática que se utiliza aqui pelo norte. Para minha surpresa, até porque sou um portuense de gema, e portanto julgava que possuía um conhecimento aprofundado das expressões típicas dos meus conterrâneos. É por isso que a conversa se transformou numa lição produtiva, traduzindo o citado axioma socrático. Naquele dia saí do banho turco com o conhecimento enriquecido – pelo menos no que diz respeito ao vocabulário que apela à utilização de metáforas.

É interessante saber porque razão algumas pessoas entronizam a sanita onde defecam. Nos tronos sentam-se os soberanos, os reis que governam os súbitos e por eles são cortejados. Quem tem lugar no trono é o senhor supremo. Ao transformar a sanita no trono, há uma imagem eivada de simbolismo: um momento de recolhimento, um daqueles momentos de intimidade do ser, em que cada indivíduo é senhor de si mesmo. Não é por acaso que na linguagem popular se costuma dizer, nestas ocasiões, que “vou fazer algo que ninguém pode fazer por mim”. Eis como se expõe a soberania suprema do indivíduo sobre si mesmo. É nestes momentos que nem sequer um Estado intrusivo interfere com os seus súbditos. É nestes momentos que o indivíduo se liberta da tutela paternalista do Estado e fica senhor de si mesmo. Para coroar o simbolismo do momento, nada melhor do que transformar a sanita num trono que consagra a soberania individual de cada pessoa. Será esta a explicação para a utilização do trono neste contexto?

Depois de alguns dias embrenhado na política, hoje o tema virou para a escatologia. Em bom rigor, não há grande diferença entre política e escatologia. Sobretudo quando assistimos ao triste espectáculo dos últimos tempos, ao que se convencionou chamar “crise política”, e a todo o cortejo de declarações, pressões, sugestões. Entre isto e a escatologia, quem consegue detectar a diferença?

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