7.7.04

A decisão de Sampaio

Para finalizar a análise da “gravíssima crise política”, algumas palavras sobre a decisão final que está nas mãos do presidente da república. Que tanto pode dissolver o parlamento, convocando eleições antecipadas, como manter a assembleia da república, convidando os partidos da coligação a formarem um novo governo. A Constituição autoriza ambas as decisões, o que tem complicado bastante a vida a um presidente que tem pautado os seus mandatos mais por uma retórica impenetrável e não tanto pelo hábito de decisões. Afinal, é este o papel pouco mais do que simbólico dos presidentes da república no actual sistema político. Só se lhes reserva verdadeiro protagonismo em situações limite como a que se vive hoje com a demissão de José Barroso.

Sampaio estará dividido entre uma decisão de ruptura e outra de estabilidade. O dilema que assalta a consciência de Sampaio é de maior dimensão: ele está dividido entre as palavras que escreveu no passado (favorecendo a estabilidade política) e a vontade íntima de satisfazer solidariedades políticas que assomam à superfície de forma irreprimível. Não quero fazer o papel de prestidigitador que tenta adivinhar o pensamento de outrem. Apenas tirar algumas conclusões dos sinais enviados ao longo destes dias.

A pergunta que se impõe é a seguinte: qual vai ser a decisão de Sampaio? Agora que se apresta a concluir a romaria ao palácio presidencial, Sampaio vai ficar sozinho com a difícil incumbência de tomar uma decisão. Sobretudo porque Sampaio deve estar dividido entre a decisão que quer tomar e a que deve tomar. Afectivamente, não restam dúvidas de que Sampaio opta por eleições antecipadas. A sua simpatia pela “direita” que nos governa é pouco mais do que nula. Sempre esteve barricado naqueles sectores do PS mais situados à esquerda. Foi presidente da câmara de Lisboa numa coligação com os comunistas. Consta também que Sampaio engrossa o rol de pessoas que não nutre simpatia por Santana Lopes, desconfiando da solução escolhida pelo PSD (e pelo CDS-PP) para a continuidade governamental.

Depois dos tais “sinais” que as esquerdas viram no tarot das eleições europeias, esta é a ocasião ideal para se fazer a ruptura com os dois anos de governação “da direita”. É o momento adequado para que se dê continuidade à retumbante derrota eleitoral “da direita”. Mais importante do que isso, permitir que a esquerda (ou as esquerdas, numa qualquer combinação resultante de uma coligação pós-eleitoral) venha para o cadeirão do poder, fazer o bem e destruir o tanto mal que “a direita” andou a fazer nestes dois anos.

Sampaio tem a seu favor um elemento que o pode empurrar para a decisão de eleições antecipadas: este é o seu último mandato. Apesar de haver quem acredite no palavreado sampaísta - de que um presidente (como ele) é um árbitro imparcial – não sou ingénuo ao ponto de acreditar nesta verborreia. Jorge Sampaio pode-se arvorar em “presidente de todos os portugueses”, como gosta de repetir até à exaustão. Talvez por não gostar da personagem, não acredito na sua isenção. E vejo no exercício do seu último mandato a oportunidade para actuar sem compromissos, apenas respeitando a sua vontade e os apelos da sua consciência. Não creio que queira ficar na história como um presidente imparcial que traiu os seus camaradas socialistas. Acima da sua condição de presidente, Sampaio deve prezar as fidelidades partidárias que foram o manancial que lhe trouxe a presidência da república por dois mandatos sucessivos.

Depois cheira-me a esturro o cortejo de “figuras” (e figurões) que tem passeado a sua douta opinião pelo palácio de Belém. Sampaio quer passar para o exterior a mensagem de que está a ouvir a sociedade civil. Suspeito deste processo consultivo. Parece-me um pretexto para esconder uma decisão que, no seu íntimo, deve estar tomada há já algum tempo. É mais fácil tomar a decisão depois de passada a imagem de um alargado e demorado processo de consultas. A imagem é cristalina: a decisão tomada, depois de escutadas tantas pessoas, será o espelho de um sentir maioritário. A sua decisão não será órfã, antes o resultado de um “consenso alargado”. Meio caminho andado para a desresponsabilização de uma decisão que lhe compete tomar.

Ontem ouvi Portas (o do CDS-PP) a fazer um apelo à memória de Sampaio. O líder do CDS-PP resgatou as intervenções políticas de Sampaio, onde estavam registadas com objectividade as condições para a dissolução do parlamento. A minha convicção é que Sampaio vai fazer tábua rasa das tais condições objectivas enunciadas há três anos. O apelo afectivo é mais forte. Chegou a hora de pagar a factura pelos apoios do passado. O presidente da república irá demonstrar que é, acima de tudo, amigo de certas facções. Cairá a máscara do indivíduo que não se cansa de apregoar que é “presidente de todos os portugueses”.

Gostava que esta previsão pudesse ser desmentida pelos factos, amanhã, dia em que se anuncia a decisão de Sampaio. Oxalá pudesse vir aqui escrever que estava enganado na minha análise, e que Sampaio me surpreendeu, uma vez na vida, pela positiva. Temo que não haverá lugar ao meu arrependimento.

Sem comentários: