30.7.04

Sobre a legalização de casamentos entre homossexuais

Nos últimos tempos o tema tem vindo à superfície com uma força inusitada. Não que seja uma discussão que surge pela primeira vez, ou que a legalização de casamentos entre homossexuais não exista em certos países (lembro-me da Holanda, por exemplo). Desta vez o tema ganhou outra visibilidade porque entrou a fundo na agenda política dos Estados Unidos. Bush rejeitou uma adenda constitucional que permitia a celebração de casamentos homossexuais. Ao mesmo tempo, em Espanha o governo de Zapatero anunciava legislação futura a consentir casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

A sociedade aparece polarizada em dois segmentos, quando este assunto é tratado: os que aceitam a possibilidade de dois homossexuais contraírem casamento; e os sectores mais conservadores que negam esta hipótese. A meio caminho encontram-se os que defendem a liberdade de orientação sexual, rejeitando porém a possibilidade de pessoas do mesmo sexo celebrarem matrimónio.

Uma evidência resulta com clareza: ainda domina, em largos sectores sociais, algum preconceito em relação à homossexualidade. De outro modo como compreender que a corrente intermédia (há pouco identificada) “tolere” a homossexualidade? Quando digo “tolera”, a utilização do verbo tem um propósito claro: parece que se trata de um especial favor que tais pessoas concedem a quem tem uma orientação sexual alternativa. Permite-se-lhes a homossexualidade, tolera-se a vivência debaixo do mesmo tecto, mas veda-se-lhes o direito de contratualizarem o matrimónio nos mesmos termos que tal direito é garantido aos heterossexuais.

Esta postura depara-se com uma incongruência. Se é verdade que tais sectores aceitam que dois homossexuais assumam a sua orientação sexual, que “constituam família” (a partir do momento em que se acolhem a uma vida em comum no mesmo lar), porque motivo se lhes veda a possibilidade de formalizarem o vínculo que os une da mesma forma que tal contrato é consentido aos heterossexuais?

É por este motivo que a posição que vai dominando é um produto da hipocrisia social em que tropeçamos ao dobrar de cada esquina. É um tipo de atitude que aceita certos comportamentos mas que lhes marca os limites, como se fosse ainda necessário fazer a diferenciação entre o que é “normal” e o que passa desse limite. Quando se admite a homossexualidade como comportamento social mas se impede as pessoas do mesmo sexo de contraírem casamento, não se está por portas travessas a censurar socialmente este padrão sexual? É como se dissesse, nas entrelinhas, que a homossexualidade ainda não é bem vista pela sociedade. Se o contrário acontecesse, as pessoas do mesmo sexo poderiam casar-se nos mesmos termos que o fazem os heterossexuais.

Sou um heterossexual assumido. É o respeito pela liberdade individual que me leva a não compreender a posição dúbia que impera entre nós e um pouco por todo o mundo. Proibir a celebração de casamentos entre homossexuais com o argumento de que a lei nos habituou a ver tal contrato como um exclusivo que pertence a um acto entre pessoas de sexo diferente equivale a uma inadmissível entorse da liberdade de opção que é, por outras vias, concedida aos homossexuais. A homossexualidade não pode ser proibida por lei, mas a mesma lei é o entrave a um contrato que formaliza os laços familiares entre pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, revela uma intrusão na esfera íntima de outrem, uma vedação inultrapassável imposta pela sociedade com acesso à feitura das leis, que continua a condicionar os usos e costumes “socialmente aceitáveis”.

No rescaldo, a individualidade de certas pessoas é atropelada. Em homenagem à liberdade individual – apanágio de todos os seres humanos, independentemente de raças, credos, ideologias ou orientações sexuais, como é tão abundantemente proclamado – este espartilho legal devia ser abolido.
 

29.7.04

A beleza das greves

Os sindicatos são um dado adquirido na organização social. Faz-se saber que têm que existir para que os trabalhadores não fiquem desprotegidos perante a abominável tendência dos “patrões” os explorarem até ao tutano. Quando pesam ameaças sobre os interesses da “classe oprimida”, organizam-se manifestações que dão mais força às reivindicações dos sindicatos. Quando não é possível convencer a entidade patronal, e as posições se extremam, a greve é o recurso final.

Somos educados numa cultura democrática que se vai enraizando com a passagem do tempo. Uma cultura de direitos, bem vincada quando uma das partes é a mais desfavorecida. Dou um exemplo. Quando estudei direito do trabalho, logo na primeira aula o professor enfatizou um princípio fundamental: o princípio de favorecimento do trabalhador. Porque o trabalhador é a parte mais fraca numa relação laboral. É esta desprotecção natural que confere mais regalias jurídicas ao trabalhador. Os sindicatos são um apêndice necessário para consolidar estas garantias. Pena é que esta cultura democrática apenas olhe aos direitos, desvalorizando a outra face da moeda – os deveres. É um mal cívico contemporâneo, um sinal de uma responsabilidade amputada.

Ontem ouvi na TSF uma notícia sobre a greve dos médicos internos. Depois de feita a introdução, foi para o ar uma entrevista com a sindicalista. A jornalista fez a pergunta da praxe: “a greve está a ter sucesso?”, inquiriu com entusiasmo. Do outro lado, a delegada sindical empenhou-se em mostrar que a percentagem de adesão andava próxima dos 100%. Excitada, deu o exemplo do hospital onde ela trabalha: não havia um único médico que estivesse a trabalhar.

Achei este diálogo surrealista. De um lado, a jornalista interessada em saber se a adesão à greve era abundante. Notava-se no ênfase que colocava na questão, numa certa excitação. Do outro lado, alguém interessada em velar pelos direitos dos seus colegas. Não faltará aqui uma peça essencial? Os médicos trabalham uns para os outros, ou para servir os pacientes que se têm que deslocar aos hospitais? A grande maioria das pessoas que vai a hospitais preferia não ter que o fazer. Seria sinal de saúde de ferro, sem serem acometidos pelas desconfortáveis maleitas que trazem mau estar.

Não questiono o direito de associação sindical (ou de outro género) que garanta os interesses de quem trabalha. O que contesto é a distorção que resulta da execução deste direito. Olha-se apenas para os interesses de quem trabalha, preterindo os direitos dos utentes dos serviços. O cenário é de total irresponsabilidade dos sindicatos. Diria mesmo de autismo. Quando se trata de serviços públicos, tudo fica ainda mais distorcido pela politização dos sindicatos. Aqui é notória a confusão dos meios com os fins. A pressão é atirada para cima do “governo”, que não satisfaz as reivindicações dos sindicatos. As greves afectam os serviços públicos que são fundamentais para milhões de utentes. Mas a culpa é sacudida dos ombros dos sindicatos para cima do governo. A imagem é esta: se o governo atendesse às reivindicações dos sindicatos, estes não teriam que convocar a greve. Noutros domínios do comportamento humano, a isto chama-se coação psicológica (vulgo, chantagem). Consta que esta não é coisa boa…

Há quem defenda que os sindicatos são maléficos porque equivalem a um monopólio. Claro que quem o defende são correntes liberais (ou neo-liberais, como está em moda quando se quer associar uma imagem demoníaca). Se os sindicatos se arrogam ao exclusivo da defesa dos interesses dos trabalhadores, eles são um monopólio. Era bom que se inventassem outras estruturas, sobretudo menos politizadas, que também corporizassem o mesmo objectivo. Novas estruturas, sem as peças de museu que abundam (basta ver a faixa etária e o discurso anacrónico dos sindicalistas que por aí andam), com maior responsabilidade e mais racionalidade na defesa dos interesses de quem trabalha.

Mais importante do que reivindicar aumentos salariais generosos (sem saber se os ganhos de produtividade os justificam), é ter a garantia de que existe um posto de trabalho. Quando olho para a acção dos sindicatos, pergunto-me se eles são mesmo defensores dos interesses dos trabalhadores: se todas as suas reivindicações fossem atendidas, quantas pessoas não estariam no desemprego ao fim de algum tempo?
 

28.7.04

A infindável saga dos incêndios

É uma imagem recorrente, Verão após Verão. Florestas a arder com o primeiro golpe de calor. Labaredas que se soltam numa fúria que varre tudo o que surge pelo caminho. Árvores reduzidas a cinzas, haveres pessoais que se perdem, pessoas e animais que encontram uma morte terrível, sem fuga possível após serem cercados pelas chamas indomáveis.

Verão após Verão, os mesmos diagnósticos, as mesmas promessas de alterar as coisas para evitar novas catástrofes que consomem mais árvores. Mas, Verão após Verão, sempre mais do mesmo. Um quadro que se repete, dando a impressão que ou existe incompetência por parte de quem deve prevenir os incêndios, ou somos impotentes para lutar contra este flagelo.

Existe a percepção de que esta é uma saga que persegue com especial acutilância as árvores portuguesas. Nada de mais errado. Hoje de manhã, no primeiro contacto com as notícias, vi imagens dos incêndios em Portugal – mas também em Espanha (onde ontem ceifaram duas vidas) e em França. Todos os anos repetem-se notícias de violentos incêndios na Califórnia, na Austrália. É uma praga que ataca todos os locais onde se conjugam vários factores: uma imensa mancha florestal, calor tórrido, ar seco e ventos fortes que propagam as chamas a uma velocidade vertiginosa.

Não me interessa discutir responsabilidades, nem tão pouco apurar possíveis soluções para esbater este flagelo nos anos vindouros. Apenas trazer a angústia ao ver as imagens que retratam os incêndios. Não tanto a obscenidade de ilustrar o sofrimento humano, quando as chamas levam os haveres pessoais de quem foi apanhado no meio do fogo. Isso faz parte do tenebroso espectáculo mediático que consome as preferências do espectador mediano, sempre ávido a servir de testemunha do sofrimento alheio para a seguir alimentar a sua compaixão pelo próximo. Se houvesse mais decoro, as televisões deviam estabelecer um código de conduta que evitasse a devassa da intimidade de pessoas que, como se já não bastasse terem perdido os seus escassos haveres, ainda vêm a penúria exposta aos olhos de um país combalido.

É triste o quadro estival. Quando o calor aperta, a humidade desce a níveis escassos e o vento transporta os sons da desgraça que se adivinha, é a incúria, a criminalidade e a doença mental que fazem o resto: os fogos ateados que, de súbito, atingem proporções gigantescas. As imagens trazem a dimensão da catástrofe. Colunas de fumo que se erguem no céu, espalhando uma chuva de cinzas por uma área que vai bem além da zona do incêndio. O ar irrespirável: com o calor asfixiante, o odor do fumo agrava a sensação de desconforto. As chamas que ultrapassam a altura de árvores, abraçando-as num manto de destruição. As faúlhas que dançam no ar, ao sabor de um vento errático que ajuda a tornar o incêndio mais devastador. A luta inglória dos sacrificados bombeiros, que por vezes pagam com a vida.

No rescaldo, o verde transforma-se num breu que traz o sabor da destruição. Natureza que destrói a natureza, num estranho jogo de compensação auto-fágica. Restam as cinzas escurecidas, um vasto campo de devastação que deixa um trago de amargura. Décadas de crescimento varridas por uns escassos minutos de fúria destruidora. Imagem do que somos: de como podemos levar anos a fio, com sacrifício, a construir algo e, num ápice, tudo se esvai. Quem conheceu florestas frondosas, com a folhagem das árvores a adejar ao sabor da brisa; e depois chega ao mesmo local, agora causticado por um incêndio, terá sentido esta imensa sensação de tristeza: onde antes dominava o verde-vida, impera um cenário negro de destruição. As árvores – o seu esqueleto encardido – jazem inertes, tresandando um cheiro de destruição trazida por uma força da natureza, o fogo.

Interrogo-me: será que enquanto houver árvores teremos, Verão após Verão, que lidar com uma obrigatória época de incêndios? Por mais que se fale de prevenção, de alterar uma “política florestal” que é inexistente, a verdade é que os factores da natureza concorrem para a fragilidade da floresta perante as chamas implacáveis. Disso não podemos escapar.
 

27.7.04

Os gatos vadios

Pela manhã bem cedo, os três gatos vadios que habitam a minha rua saltam do esconderijo para o exercício matinal. Vêm em grupo, ainda entorpecidos pelo sono nocturno. Aproveitam a quietude própria da hora matinal para circular na rua. Sem pessoas por perto, sem carros a calcorrear os paralelos, os gatos espreguiçam-se. Dão pinotes quando os pássaros esvoaçam nos voos que trazem consigo a alegria da manhã.

É curioso como três gatos que não são da mesma ninhada têm um sentido de vida em comum tão impregnado. Mais interessante se torna quando o gato é conhecido pela sua independência, pela propensão para uma vivência que rejeita a comunidade. Dizem os estudiosos que o gato é um animal solitário. Tendo uma noção arreigada da exclusividade do território, o gato repele todos os outros gatos que ousam invadir a coutada que ele delimitou. A socialização do gato dá-se quando, atraído pelo cio da gata, lhe faz a corte até à estocada final. O espírito familiar está ausente nos gatos, e mesmo as mães apenas acolhem as suas crias até sentirem que elas precisam da orientação maternal para se manterem vivas.

É por isso que me espanta o espírito de comunidade dos três gatos que por aqui andam. Não sendo irmãos, adoptaram-se uns aos outros. Fico embevecido ao olhar as suas brincadeiras. Como se engalfinham uns nos outros, soltando uma patada inocente que desafia o companheiro para uns momentos de brincadeira. A investida faz-se com uma aproximação provocante, com uns passos ágeis que se transformam numa corrida alucinante que é logo seguida pelo gato desafiado. De súbito, uma mudança de direcção deixa o perseguidor surpreendido. Os gatos param para recuperar o fôlego. Repete-se a aproximação. Perante a desatenção de um dos gatos, o outro acerca-se do cachaço e mordisca-o para se repetir o ritual da brincadeira. Saltam um sobre o outro, num bailado esquisito pintado pelas orelhas dobradas para trás, em sinal de uma fúria saudável que os empurra para a dança que se passa diante dos meus olhos.

Entretanto, um barulho estranho prende a sua atenção. Param, por um momento, o bailado em que estavam imersos; o ruído pode ser sinal de perigo. Com um movimento lesto da cabeça dirigem o olhar para o local de onde veio o ruído. O terceiro gato junta-se, como se os três sentissem que estão mais protegidos se se defenderem em conjunto da possível ameaça. Segundos volvidos fica a garantia que aquele ruído estranho, que só os seus delicados ouvidos conseguiram captar, não representa ameaça alguma. É momento para voltar a descomprimir, chamando de novo a salutar loucura que anda de braço dado com estes gatos. Repete-se o quadro circense que me deleita. Até que, cansados do exercício, os gatos desinteressam-se da luta desenfreada que protagonizavam.

Chega, entretanto, a pessoa que os alimenta. No seu pequeno automóvel – daqueles que não carecem de carta de condução – aproxima-se num ritmo lento, com o barulho típico da carburação do pequeno motor do veículo. Os gatos estão familiarizados com este ruído, conhecem o automóvel. Sabem que a chegada deste carro significa o pequeno-almoço que os sacia depois de horas de jejum. Desatam numa correria atrás do carro, com as suas caudas espetadas na horizontal, empunhando a felicidade de quem está prestes a encher o estômago de iguarias trazidas pelo generoso homem.

Ele para o carro e demora-se por uns segundos. Para desespero dos gatos, que cercam o carro e soltam miados clamando pela comida que não pode esperar. Por fim o homem sai do carro e é ver os gatos, num atropelo, a quererem conquistar a sua atenção. Enroscam-se nas pernas do homem, quase o levando à queda. Com ternura, ele leva a mão ao dorso curvado dos gatos, depositando algumas carícias de forma aleatória. À distância posso adivinhar o ronronar de alegria que irradia dos gatos.
 
O homem pega num saco que os gatos sabem que contém o alimento que é ansiosamente esperado. Dirige-se para dentro do terreno que ele cultiva com dedicação, seguido pelos gatos que, em fila, caudas ao alto, se perdem da minha vista para a degustação das iguarias que os mantêm bem nutridos.
 

26.7.04

Paciência tem limites

A partir de hoje o/a Carter vai ficar a falar sozinho.

Mulheres, Santana Lopes e governo: um caso mal resolvido?

Um pouco de aritmética: dezoito ministérios, apenas três ministras; trinta e oito secretarias de Estado, somente cinco secretárias de Estado. É óbvio que as feministas militantes têm que estar descontentes com o novo primeiro-ministro. Um pouco de decência levaria Santana Lopes a mostrar mais agradecimento pelo sexo feminino. Afinal, com o passado de D. Juan que arrasta, seria da mais elementar justiça que o primeiro-ministro distribuísse mais pastas por mulheres. Sem as mulheres que passaram pela sua “alçada” jamais teria tido a vida regalada que levou. Ou isso, ou o contrário: a de um acto marialva, bem ao jeito de quem usa as mulheres e as deita fora, como se tratassem de objectos descartáveis.

Eis mais uma peça que se adiciona ao interminável rol de provas de como este governo nasceu torto. Em bom rigor, as expectativas foram defraudadas. Com a personagem em questão, se há expectativas elas estão alinhadas por um diapasão muito pequeno. Mas não se pense que estou desgostoso pela escassa participação do sexo feminino no governo. Continuo a defender a ideia de que a “igualdade forçada” de sexos é uma simples manobra ilusória, uma tentativa para forjar a igualdade sem haver a preocupação de se saber se essa igualdade se justifica no plano racional.

Um exemplo concreto da estupidez das quotas que tentam garantir algum protagonismo às mulheres. Na estratégia de charme para cativar os deputados do Parlamento Europeu, José Barroso afirmou solenemente que quer ter oito mulheres no colégio de vinte e cinco comissários. Logo, Barroso quer impor uma quota de um terço destinada ao sexo feminino. Primeira observação: Barroso modernizou-se quando fez as malas e desembarcou em Bruxelas. Em Portugal, enquanto primeiro-ministro, nunca teve esta preocupação. Segunda observação: em termos de ousadia feminista, o sucessor de Durão ficou aquém de quem lhe deixou o poder nos braços. Outra vez a aritmética para o comprovar: Barroso quer 33% de mulheres na Comissão, Santana Lopes ficou-se por uns magros 16% (ministras mulheres) e 13% (mulheres secretárias de Estado).

Mas a observação mais importante está na arbitrariedade do número: porquê um terço e não apenas um quarto? Porque não ainda mais ambição e estabelecer, como demagogicamente o fez o governo de Zapatero em Espanha, o mesmo número de mulheres e homens? Ao querer mostrar estes sinais de modernidade, para agradar ao público feminista para quem a história das quotas é uma melodia que adoça os ouvidos, Barroso caiu numa armadilha.

Definir uma quota – qualquer que ela seja – que garanta um número mínimo de lugares políticos destinado às mulheres levanta um alçapão onde é difícil não cair. Há sempre uma pergunta que fica a pairar no ar: porque não se foi mais longe na quota atribuída às mulheres? Pior ainda: parte-se do princípio de que há mulheres suficientes, e com a necessária competência, para preencher a quota. O que nem sempre acontece. Com a cegueira das quotas dedicadas ao sexo feminino, resvala-se para uma absurda situação de discriminação de competências: veda-se o lugar a quem é mais competente (que, por um acaso da natureza, é homem), apenas pela circunstância de já haver homens a mais no preenchimento do lugar.

Por cá, a trapalhada na formação do governo foi tão grande que nem sequer houve tempo para a aritmética feminista. No rescaldo, fica a imagem de um governo enviesado em termos de género. Mais uma razão para cair em cima de Santana Lopes e de Portas. Absorvidos pelas pressões sem conta exercidas pelos aparelhos partidários, nem se deram conta do “exemplo de modernidade” que um outro português protagonizava na União Europeia.
 
Agora virão os profetas da desgraça alegar que até nesta matéria o actual governo constitui um retrocesso, uma perigosa “viragem à direita”. É só esperar para ver.

25.7.04

Correio em dia II

Fui brindado com estes elogios de alguém que se faz passar pelo “Verdadeiro Artista”. A beleza da liberdade dos comentários é esta: deparar com a análise cáustica ao tom cáustico que perpassa das minhas palavras, aqui e ali pontuadas por desvarios “lamechas”.

O que me repugna, Verdadeiro Artista, repugna-me mesmo. Saiba que me esforço por ter o cuidado de usar as palavras correctas, com o seu sentido correcto. Não vou dizer que o consigo a todo o momento, dada a minha natural queda para a falibilidade. Por isso, não me repugna que a si lhe repugnem os meus excessos cáusticos. Também não me repugna que olhe para os momentos em que fujo do azedume e, pela sua lupa, são pura lamechice. Como diz o outro, é a “puta da subjectividade”! Se calhar admira Pablo Neruda; para mim é um poeta lamechas no seu expoente máximo – no que faço a distinção entre o que, para mim, é e não é lamechice.

O que me repugna, isso sim, é que alguém me trate por “amigo” quando não o conheço de parte alguma. Porque preservo as poucas, mas boas, amizades que tenho. E se me avisou para não exagerar nas palavras que utilizo, o mesmo reverte para si: não perverta as palavras, sobretudo quando estamos perante uma palavra (amigo) que, para mim, tem tanto valor.

O Ponte Vasco da Gama pergunta-me se estes (raros) momentos em que a sensibilidade fica à flor da pele não são propositadamente escondidos pelos mais abundantes momentos corrosivos em que o cepticismo e a língua afiada emergem. A tendência céptica não é um esforço deliberado para esconder alguma sensibilidade que por aqui circula. Tento libertar o que necessito de libertar. Mercê do descontentamento com o que me rodeia, é esse lado corrosivo do mundo que espicaça a minha acrimónia. E que vai pondo uma tampa à outra veia mais simpática que só a espaços vem cá para fora.

Talvez a solução seja abstrair-me do que se passa à minha volta, encafuar-me num universo mais aprazível e deixar a tal sensibilidade brotar.

23.7.04

Carlos Paredes

Foi a primeira notícia da manhã: depois de anos de sofrimento, definhado por uma doença que o consumiu até às entranhas, Carlos Paredes morreu. Não vou fazer a elegia. Como escrevi há tempos, repugna-me elogiar as pessoas no momento da sua morte. Prefiro recordar a sua música, as sensações que me trouxe. Festejar a alegria, a melancolia, os segredos dos acordes da música que Carlos Paredes compôs, é a melhor forma de esconder as sombras que acompanham as carpideiras que vertem lágrimas pela morte do artista.

Tomei contacto com a sua obra através de uma parceria ocasional com os Madredeus. Foi essa colaboração que despertou a minha curiosidade, que me levou a procurar alguma da discografia de Carlos Paredes. Admito que apenas conheço uma ínfima parte da extensa obra. O que conheço é suficiente para nutrir uma profunda admiração pela música de Paredes.

Ao escutar a sua música, o traço mais saliente é a enxurrada de imagens que transpira de cada acorde dedilhado. O espírito é assaltado por múltiplos quadros com tonalidades diferentes, ao sabor do ritmo e da melodia. Fechando os olhos na audição de uma música, vejo as ruelas íngremes de Lisboa, calcorreadas pelas varinas, numa vida sofrida mas feliz; imagino as crianças que soltam a alegria esfuziante nas brincadeiras na pausa da escola; vejo como os pescadores regressam de uma árdua labuta, depois de mais uma faina em mar tempestuoso.

Ouvir Paredes é sentir a música feita de sons que sussurram palavras singulares. A guitarra portuguesa, tratada com mestria, liberta sons que se traduzem em palavras que ecoam nos ouvidos. Como se trauteasse a melodia e, com ela, subissem as palavras escondidas por detrás dos acordes. Lembro-me de uma fase em que tentava fazer poesia; a música de Carlos Paredes servia de inspiração para tentar encontrar as palavras perdidas no cosmos. Era a música de Carlos Paredes que me levava a agarrar algumas das palavras que andavam à solta, tentando dar-lhes forma de poema. Porque a música de Paredes é poesia musicada. Poema sem palavras, que a música traz até ao espírito do ouvinte.

Na música de Carlos Paredes misturam-se os sentidos e as artes. Se os sons são palavras tocadas pelos dedos mágicos do músico, a música tanto se desfaz em poesia como se molda num quadro idílico. Talvez esta representação dos sentidos seja facilitada pela ausência de palavras. É uma música que permite um acto de libertação do ouvinte. A concentração nos sons, nas imagens que os sons sugerem, deixam a flutuar na atmosfera as imagens construídas ao sabor de quem escuta a música. Certa música consegue ter estes predicados – mas pouca é a música que alcança esta dimensão.

Ao regressar a casa, deparei com a música de Carlos Paredes na TSF. Não foi surpresa escutar aquela que é, talvez, uma das músicas mais conhecidas de Paredes, o “Canto de embalar”. Uma música sublime, de uma beleza arrepiante, uma excursão pelos sentimentos ternurentos que sugerem uma noite mal dormida pelo filho recém-nascido que não consegue dormir. Esta música sempre me trouxe a mesma sensação: imaginar-me pai, mesmo quando nem sequer sonhava que pudesse vir a sê-lo, e embevecer-me com o esforço de tentar levar ao sono o meu filho.

Anos mais tarde, Pedro Ayres de Magalhães escreveu um poema singelo que trouxe outra roupagem ao “Canto de embalar”. Então a música ficou no limiar da perfeição, com os sons da guitarra de Paredes, as palavras de Ayres de Magalhães e a voz aveludada de Teresa Salgueiro.

Lá vai ao fundo a sereia
Ouviu à noite cantar
Andava à noite à candeia
Andava à noite no mar

Eu fui contigo ao inferno
Fomos ao fundo do mar
Ó meu amor que eu mais amo
Deixa-me eu te embalar

Uma, duas ou três
Tantas, não sei contar:
Eu sei lá quantas vezes
Sai o barco para o mar;
Mas à noite há segredos
Deixa-me eu te embalar

22.7.04

Dilema sobre a confiança

É um dilema profissional. Não é um caso insólito, agora que o calendário de exames está em pleno. Por esta altura os alunos tentam levantar as mais variadas excepções para justificar insucessos ou faltas a exames. Desta vez o caso mudou de figura, porque a argumentação do aluno pôs-me na dúvida. A novidade vem de facto de em ocasiões anteriores ter rejeitado sem hesitações apelos idênticos.
 
A história conta-se em poucas palavras. O regulamento de avaliação da universidade coloca duas condições para que os alunos possam estar presentes em exame final. Em primeiro lugar, têm que marcar presença num dos momentos intercalares de avaliação (as frequências), nem que seja para apenas preencher o cabeçalho da folha de teste e entregá-la em branco. Em segundo lugar, há um requisito relacionado com assiduidade. A regra estabelece um mínimo de 40% de presenças para que possam ser submetidos a exame final. Para os alunos que beneficiam do estatuto de trabalhador-estudante, cada professor tem liberdade para os isentar desta regra.
 
Há dias, um dos alunos presente num exame estava bem longe de cumprir o requisito da assiduidade. Tive o cuidado de confirmar o seu estatuto: não era trabalhador-estudante. Automaticamente não corrigi o seu exame. Na pauta apareceu o “E” de “excluído”, conforme consta do regulamento. No dia seguinte à afixação da pauta, o aluno contactou-me por e-mail. Manifestava estranheza pelo “E”, já que não constava qualquer explicação para a exclusão. Em resposta expliquei-lhe as razões da sua exclusão (e da omissão na pauta: apesar de as ter mencionado no espaço dedicado às observações – no rodapé da pauta – por lapso dos serviços essa informação foi tapada por outra pauta).
 
Poucos minutos depois recebi outro e-mail do aluno, que pretendia justificar o sucedido. O teor era o seguinte:
 
Venho desta forma (já que sou de longe e não posso ir sempre para o Porto) apelar à sua compreensão e sensibilidade para o meu caso, já que a universidade assim não o fez. O que é verdade é que eu durante o período de aulas estava a morar no Porto enquanto estudava e à noite trabalhava num bar/café na cidade do Porto. Porém este trabalho não era declarado no IRS, era apenas em "part-time" (para ajudar a pagar os estudos). Expliquei esta situação à universidade que mesmo assim nada fez para me ajudar! Como deixei a sua disciplina para exame final faltei um pouco mais a esta cadeira por causa do trabalho, mas admito que pensei que tivesse mais presenças. Estudei bastante para tentar passar neste exame, mesmo tendo outro exame no mesmo dia e um outro no dia anterior, pois não sabia que estava excluído a esta cadeira. Apelo mais uma vez à sua compreensão e sensibilidade para este meu caso, e espero que o Dr. reconsidere a minha situação.
 
Ao fim de mais de dez anos de ensino fui-me habituando a um rol infindável de justificações e desculpas, umas mais elaboradas e outras com menor sofisticação, apresentadas pelos alunos para explicar mil e uma coisas. Também os fui habituando a não resvalarem para atitudes choramingas, que comigo não pegam. Soube construir uma carapaça, porque da conversa com outros colegas percebi que os alunos são mestres em arranjar pretextos mil para justificar as suas faltas. Era até acusado de ser insensível perante situações deste calibre.
 
Quando li este e-mail fiquei sem saber como reagir. Por um lado, pensei que era mais uma artimanha para tirar dividendos de uma situação que foge aos regulamentos. O pedido do aluno teria que ser rejeitado na hora. Lembrei-me de todos os casos em que os alunos recorrem à fértil imaginação para adiantaram as justificações mais implausíveis de que há memória. Interroguei-me se este não seria o caso. Mas a outra metade de mim levantou outra questão: e se a história relatada pelo aluno corresponde à verdade? O aluno continua, ainda assim, fora do regulamento. No entanto, atendendo aos elementos apresentados pelo aluno, não deverei ser flexível? Não deveria levar em consideração o que foi contado pelo aluno e fazer vista grossa do regulamento, corrigindo-lhe o exame e lançando a nota?
 
Logo de seguida as dúvidas suscitadas pelo outro meridiano vieram ao de cima: e se o aluno congeminou uma história bem contada apenas para suscitar a compaixão do professor? Ele nunca me contactou, durante o semestre, para me colocar ao corrente da sua situação – ou seja, trabalhava sem beneficiar do estatuto de trabalhador-estudante. À boa maneira das gerações actuais (ou será um problema congénito?), deixa-se rolar o tempo na expectativa de que os problemas não surjam. Quando eles batem à porta, deixando as pessoas com as calças na mão, tenta-se então resolver o problema como for possível.
 
Encontrei uma solução airosa: sugeri que o aluno submetesse o caso ao director da faculdade. Já sei, sacudi a água do capote, mas evitei cair em contradição com o regulamento. Ao menos este episódio serviu para registar que ando com o coração menos empedernido do que o habitual. Pelos menos as dúvidas que o caso suscitou são a revelação de que “amoleci”. Só me falta descobrir o significado deste sintoma. 
 

21.7.04

Correio em dia

1. Carter fez o comentário que se encontra aqui alojado. A minha resposta é a seguinte:
 
a) Sei que vai chocar, mas não me preocupa a existência de desigualdades de riqueza tão gritantes. Mais importante é gerar riqueza – apesar de soar a materialismo, bem sei. Ainda que ela esteja concentrada nas mãos de poucos, indirectamente dissemina-se por muitos que vêm o seu bem-estar aumentar (pelos novos investimentos que ela proporciona, pelos rendimentos salariais que gera, pelos impostos que vão absorver parte dessa riqueza).
 
b) Não enfio a carapuça quanto à sugestão cínica do “paraíso da abundância”. Carter, aposto que não és mais “anti-americano” do que eu!
 
c) Temos visões diametralmente opostas do funcionamento da sociedade. Já vem de trás a nossa discussão acerca de Marx. Tu continuas a acreditar nele, como outros ainda acreditam em Cristo – e noutros Messias que são a redenção de um mundo amaldiçoado. Já sabes o que penso de Marx. Tenho para mim que é o grande responsável pelas desigualdades que ainda existem – e não o mercado, os capitalistas, ou os “neo-liberais”.
 
d) Aposto que vês em mim um representante do hediondo “neo-liberalismo”. Aliás, está em moda usar o termo “neo-liberal” quando se quer diabolizar um modelo de sociedade que desconfia da bondade e da imparcialidade do Estado como engenheiro social. Estás redondamente enganado quando sugeres que Keynes é o referencial deste “neo-liberalismo”. Keynes é a antítese do modelo que defendo, como é a antítese de todo o liberalismo. Keynes é o alicerce da intervenção do Estado na economia, o grande teorizador contemporâneo de políticas fiscais activas e da necessidade de políticas sociais. Mas, para teu desassossego, devo-te dizer que não me vejo como um “neo-liberal”. Serei ainda algo mais radical …
 
e) Quanto ao anonimato: registo que Carter seja o teu nome. Mas não é justo sugerires que quem se esconde por detrás do anonimato sou eu (“o felino”), porque o blog tem o e-mail que me identifica.
 
2. Também do Ponte Vasco da Gama recebi um comentário. Devo dizer que:
 
a) Talvez seja possível ver na segregação clubística uma propositada divisão de águas. Chama-lhe parcialidade se quiseres, ou clubismo primário. É verdade que alguns energúmenos do Sporting invadiram o relvado quando o Benfica marcou o golo. Mas nas imagens vindas da Suíça só vi camisolas vermelhas e azuis e brancas. O que me conveio para escrever o que escrevi…
 
b) Não posso afirmar com a mesma certeza que foram mais as pessoas que ficaram nas bancadas do que as que saltaram para o relvado. As imagens não são esclarecedoras. Nem importa quantificar. Apenas registar a selvajaria que passeou pelo relvado. Os (possíveis) excessos dos seguranças não servem de justificação para este acto de selvajaria pura. Senão estamos mais uma vez a aceitar que os fins justificam os meios. Imagina, no meio do clamor popular contra a horrenda pedofilia do processo Casa Pia, se um acusado (antes de ser julgado) cai nas mãos da populaça reunida em manifestação contra as atrocidades cometidas. Justifica-se a justiça popular, o “olho por olho, dente por dente”?
 
c) Não é fácil concluir que os seguranças estavam a usar de força excessiva. Não sabemos se o indivíduo que correu pelo relvado, ao ser manietado pelos seguranças, não estava a oferecer resistência. Não sabemos se tinha a força de um cavalo que obrigava ao recurso de violência por parte dos seguranças. Nem sequer o povinho ali presente o sabia. (Lembra-te do catalão que entrou no relvado na final do Euro 2004 e atirou com uma bandeira ao Figo, antes de se estatelar contra as redes da baliza: também caíram em cima dele sei-lá-quantos seguranças, que de meiguice nada tiveram. E não houve qualquer invasão.) É o sangue na guelra, bem próprio dos povos latinos, que nos portugueses anda em letargia; mas quando desperta, irrompe que nem um vulcão furioso. A imagem passada para o exterior, essa é bela, sem dúvida. 
 

A direita discursa para a esquerda – ou a direita não é assim tão de direita?

Não vou governar para defender os interesses dos mais poderosos. Estou aqui para defender os interesses dos mais necessitados”.
 
Pedro Santana Lopes, discurso de tomada de posse como primeiro-ministro, 17 de Julho de 2004.
 
Alguns dias depois da cerimónia solene que entronizou Santana Lopes, interessa-me reflectir sobre uma tendência que se vem repetindo ultimamente: a necessidade que a direita sente de seduzir o público da esquerda. Antes de explorar o tema, duas notas prévias: uma para explicar hoje vou prescindir das aspas sempre que me referir à esquerda e à direita, apenas para facilitar a escrita (e a leitura); a segunda para lembrar que mantenho a ideia de que há direitas e esquerdas, no plural. Só por comodidade de exposição vou hoje utilizar as palavras no singular.
 
A abordagem da osmose entre direita e esquerda (sobretudo nas suas facções mais moderadas, o grande “centrão político”) pode ser prejudicada pela citação que usei no início. Sobretudo pelo seu autor, acusado de uma deriva para a direita, afastando-se do centro que era mais do agrado do seu antecessor. Já antes escrevi sobre a personagem que agora é primeiro-ministro, manifestando a minha antipatia pessoal pela pessoa em causa. O que me deixa mais à vontade para avançar com a análise.
 
Podemos desconfiar de tudo o que Santana Lopes diga ou queira fazer. O seu passado não é abonatório, não lhe permitindo granjear um capital de confiança. Os mais cépticos podem torcer o nariz à citação que retirei do discurso de Santana Lopes. Podem dizer que é mais uma manobra de sedução para tingir a desconfiança que foi sendo acumulada ao longo das semanas de impasse criadas pelo presidente da república. Podem argumentar que é apenas uma manobra comunicacional para afastar os fantasmas da deriva para a direita, para que as pessoas não fiquem assustadas com o cenário dantesco que certas personalidades de esquerda ergueram, avisando que a democracia corria sérios riscos. 
  
Se é ou não uma simples manobra retórica para apaziguar os ânimos, só o tempo o dirá. Teremos que deixar escoar o tempo para comprovar se Santana Lopes está a governar em consonância com os poderosos interesses de poucos e contra os interesses dos mais carenciados. O que fica é a mensagem vertida nas palavras. E aí é indesmentível uma mensagem que envia claros sinais de sedução às pessoas inspiradas pelos valores tradicionalmente associados à esquerda. É este, pelo menos, o sentir que extravasa de palavras que sentenciam a defesa de interesses dos mais pobres em detrimento dos interesses dos mais ricos. Esta é uma retórica que se rotula claramente com a esquerda.
 
Será este mais um sinal do afamado populismo de Santana Lopes? Se por populismo se entende uma linha de acção sem fio condutor ideológico, um conjunto de medidas desgarradas apenas com o condão de cativar a fidelidade do eleitorado, sem qualquer análise cuidada do impacto futuro de tais medidas – então parece que esta declaração do novo primeiro-ministro é uma manifestação exuberante de populismo. Ao mesmo tempo apetece perguntar o seguinte: e a conduta de sindicatos, que se afirmam defensores dos interesses dos trabalhadores e depois fazem reivindicações sem sentido, que apenas teriam como consequência (se fossem atendidas) um aumento exponencial do desemprego – isto não é populismo? E a postura dos socialistas, que sempre defenderam a violação da disciplina orçamental (quem sabe se para lavar a face do descontrolo orçamental em que mergulharam o país), contra os compromissos assumidos na União Europeia – isto não é populismo?
 
Sou céptico em relação ao fenómeno político, como é sabido. Paradoxalmente mantenho um interesse – diria quase mórbido – nestas movimentações. Nem que seja para consolidar o meu cepticismo. E chegar à conclusão que a classe política, sem excepções, é composta por enganadores que distorcem a mensagem enviada para o público. Vale tudo, desde que os meios justifiquem os fins (a captura de votos, a ascensão ou a manutenção no poder).
 
Se existe crise, ela não é conjuntural ou momentânea, como muitos pretendem demonstrar. Essa crise é bem mais profunda, vem de trás, afecta toda a classe política e inquina o sistema em que vivemos. Nada é genuíno, a artificialidade irrompe a todo o momento, governa-se (e faz-se oposição) com base em pressupostos que se afastam da realidade. Eis a política como realidade virtual.

20.7.04

Emigrantes na Suíça, adeptos do Benfica: uma amostra do país

No sábado o “grandioso” Benfica fez um jogo na Suíça. Sinónimo de festa da rija para milhares de emigrantes suíços, que acorreram em massa ao pequeno estádio onde o jogo decorreu. Já nos últimos minutos, um adepto decidiu entrar no relvado e desatou a correr com uma faixa alusiva a qualquer coisa. Não ameaçou ninguém. Apenas queria fazer o seu número e ficar para a posteridade. No entanto, os seguranças privados logo saltaram em magote e manietaram, com alguma violência, o exibicionista. Foi aí que o caldo entornou.
 
A populaça ficou indignada com o exagero da violência dos seguranças. Sem delongas, começaram a calcar o relvado para fazerem justiça pelas próprias mãos. Quem estava de cachecol vermelho ao pescoço esqueceu-se por momentos do fervor benfiquista e deixou que o sentido de “justiça” falasse mais alto. O que seguiu foi um arraial de pancadaria, cenas chocantes dignas de estádios de futebol latino-americanos. Os seguranças, que não seriam mais do que meia dúzia, foram cercados por centenas e centenas de pessoas que quiseram exibir a sua raiva pela desproporção da reacção.
 
De um exagero passou-se a outro bem pior. A famosa “justiça popular” (um eufemismo…), em que amiúde não se hesita em recorrer à acção directa para concretizar aquilo que o povo, na sua imensa sabedoria, pensa que é a justiça. Sem frieza de raciocínio, apenas levados pelo calor da emoção, põem a justiça nas suas mãos como se fossem os magistrados supremos de um sentido de justiça acima de qualquer suspeita.
 
As imagens que enxamearam as televisões são vergonhosas. São, além disso, um retrato fiel de um certo sentir popular que é dominante. De um povo pacato que, num instante, desperta para uma violência inusitada e descamba para reacções sanguinárias. Costuma-se apontar o dedo aos adeptos ingleses, os piores hooligans de que há conhecimento. Pelo menos esses hooligans não levam a violência para dentro dos estádios de futebol. Não estou a dizer que os hooligans ingleses sejam uns anjinhos. Longe disso. Todavia não há memória (pelo menos recente) de episódios tão lamentáveis como esta invasão de campo protagonizada pelo magote de emigrantes suíços que são adeptos do Benfica (também por lá andavam alguns a envergar camisolas azuis e brancas, o que não é de estranhar quando a arruaça sai à rua). Assim se compreende porque os estádios em Inglaterra não têm vedações a separar o público do relvado, enquanto em Portugal (ou por onde andam adeptos portugueses) tais vedações são um imperativo de segurança.
 
A vergonha é ainda maior porque este episódio associa uma comunidade lusa a um país estrangeiro. Os acontecimentos já seriam lamentáveis se tivessem ocorrido num estádio português. O cenário é ainda mais infame por tudo se ter passado num país estrangeiro, para mais num país conhecido pela tolerância com que recebe as comunidades de emigrantes. É a imagem de Portugal que fica manchada pelo comportamento do bando de energúmenos que decidiu arregaçar as mangas e pôr as suas mãos ao serviço do que eles pensam ser a justiça. É a imagem do país que temos, do país que somos.
 
Em tudo isto há uma dimensão adicional de repugnância: ver meia dúzia de pessoas atacadas por centenas, senão milhares de uma horda enfurecida. Ver um segurança jazendo no chão, indefeso, a ser atacado com pontapés por energúmenos sem conta. Traduz bem uma reacção típica do português típico: é tão fácil bater em quem está prostrado, em quem é incapaz de reagir. Quem bate tem a certeza que pode bater à vontade sem ter que suportar a reacção violenta de quem é atacado pelo colectivo. É a velha fábula: é mais fácil bater nos mais fracos, e fugir dos mais fortes. Eis a grande coragem que preenche o imaginário português, a característica mais saliente de tantos valentões marialvas que por aí andam, gargantas inchadas por façanhas tão notáveis como estas. 
 

19.7.04

O padre e a crise

Sabia que neste fim-de-semana era a romaria anual no Carvalhido. Os cartazes que anunciavam as festividades apareciam com profusão nas portas dos estabelecimentos comerciais da zona. Um palco estava montado, prometendo animação com uns quantos “artistas portugueses de primeira água”. A inevitável roulotte das farturas dividia um espaço exíguo com um carrossel. Também sabia que a festança terminava no domingo. Os foguetes matinais despertaram os vizinhos para a boa nova. Nunca adivinhei que, quando meti os pés ao caminho ao fim da tarde, fosse dar de caras com a procissão.
 
Fui ao supermercado para comprar víveres para o jantar. Ora, entre a minha casa e o supermercado encontra-se o Carvalhido, o epicentro das festividades. Tive, portanto, que atravessar o público que esperava que o padre terminasse o seu discurso para que a procissão se fizesse ao caminho. Involuntariamente fui testemunha de algumas das palavras que o padre soltava do alto de um palanque improvisado, com a ajuda de um megafone que amplificava o discurso para ser audível por todos os crentes e outros passeantes. Sem ter parado no local, não pude tapar os ouvidos às palavras pontifícias que gritavam bem alto da desembocadura do megafone. O padre dizia o seguinte:
 
O país está em crise. O momento político é de crise. Também a economia vive uma crise. Até o sistema de valores atravessa um momento de crise”.
 
Não estivesse imerso no meio de uma multidão de crentes que ansiosamente esperava o início da procissão, diria que estas palavras ecoavam ao estilo do vozeirão de um Carvalho da Silva ou de qualquer outro sindicalista da CGTP. Para aquele padre idoso o país está numa crise sem precedentes. Da política à economia, passando pela sociedade e pelos (não) valores que a conduzem, o panorama é dantesco.
 
Se esta oratória tivesse sido proferida uma semana antes, teria que me interrogar se o prelado não era uma daquelas pessoas que tão decepcionadas ficaram com a decisão do presidente da república, que recusou a pedinchisse das eleições antecipadas. Só assim se compreende que, para o padre, estejamos no meio de uma crise política. Ao querer solenizar as festas locais da nossa senhora de não-sei-quê com o seu discurso, o clérigo meteu-se onde a igreja não é chamada.
 
No passado a igreja foi acusada pela cumplicidade com o Estado Novo. Depois apareceu conotada com “a direita”. Hoje são incontáveis os casos em que parece haver uma curiosa aproximação entre a igreja e uma certa esquerda. Desconheço se será inspiração retardada da teologia da libertação que, na América Latina, põe lado a lado Cristo e Che Guevara, a ideologia da disseminação do amor e a violência das armas. Não sei se será uma vocação tardia pelas “causas sociais”, como se a igreja perdesse a vergonha e escondesse a riqueza que detém vindo em auxílio dos mais necessitados sem materializar, com a riqueza que possui, as ajudas que aqueles necessitam.
 
Tenho uma interpretação alternativa para a nova militância política de muitos representantes da igreja. Antes pela direita, agora mais à esquerda, a igreja sente a necessidade de manter uma presença activa nos domínios que escapam aos assuntos que por natureza deve tratar. A igreja dá a sua perninha em assuntos seculares, para reiterar aquilo que sempre esteve habituada a fazer ao longo de séculos e séculos: interferir na esfera íntima das pessoas. Com esta chamada de atenção à imensa crise que nos atormenta, aquele padre e a igreja que ele representa pretendem afundar as consciências num espírito negativo que apele mais ainda à dependência da fé. A crise é o lenitivo para mais almas se entregarem, descomprometidas e cegas, à fé.
 
A crise interessa à igreja. Quanto mais gente se sentir deprimida pelos sintomas da crise, maior é o número de pessoas que se refugia na igreja como remédio que atira o fantasma da crise para trás das costas. Eis como uma crise pode ser artificialmente mantida a quem interessa que as pessoas não pensem pela sua cabeça. Pelo meio, uma estranha aliança entre sectores que estão habitualmente de costas voltadas!
 
 

16.7.04

Pobreza e injustiça social: a quem interessam?

No passado convencionou-se que os temas sociais eram a principal linha fracturante entre “esquerda” e “direita”. Só a “esquerda” teria consciência social, ao passo que a “direita” seria insensível a problemas como a pobreza, a injustiça na repartição da riqueza, o desemprego.
 
Com a passagem do tempo tem-se notado uma osmose de causas entre “esquerda” e “direita”. Tem-se notado uma aproximação recíproca, bebendo inspiração em causas que não eram seus estandartes tradicionais. A “esquerda” começou a reconhecer a inevitabilidade do mercado. A “direita” domesticou-se pela assunção de causas que corporizam um certo sentir social. As franjas extremistas de ambos os lados da barricada continuam imunes a esta transformação, fiéis às causas de sempre e presas à retórica que não muda.
 
A assunção de causas que não faziam parte do seu património genético está na origem de novas correntes que consideram ultrapassado o binómio “esquerda-direita”. Já não faz sentido falar em “esquerda” e em “direita”, tal a transversalidade de causas que atravessa ambas as correntes. Mesmo assim, as esquerdas arrogam-se ao papel de donas legítimas e exclusivas da luta contra a pobreza. São elas que aparecem na linha da frente contra a exclusão social, contra o desemprego, apresentando propostas que visam uma mais justa repartição da riqueza. O odioso da questão é atirado para cima da “direita” e do funcionamento do mercado.
 
É bom parar um momento e pensar: a quem aproveita a existência de pobreza e de injustiça social? Na resposta vou aceitar a divisão ancestral entre “esquerda” e “direita”, utilizando-as como categorias operativas. Não me parece que a pobreza acentuada e as gritantes assimetrias de riqueza sejam do interesse da “direita”. Por uma questão de simples lógica: quanto maior for a fractura entre os poucos que detêm riqueza e os muitos que estão mergulhados em situações de carência, mais a “direita”, como responsável por este cenário, terá a perder. Maior será a mobilização contra a “direita” e a “esquerda” será ganhadora.
 
Querendo exibir-se como defensora dos perseguidos pela injustiça social, a “esquerda” vive da pobreza e das desigualdades de riqueza. Aliás, ela precisa da pobreza e da injustiça social como do pão para a boca. São o seu balão de oxigénio. Se o mundo fosse o lugar idílico que a “esquerda” e certos sonhadores gostariam que fosse – sem pobreza, sem grandes desigualdades na repartição da riqueza – o que seria da “esquerda”? Perderia a sua principal bandeira, que cativa tantos apoios entre todos aqueles que vêm em situações de injustiça social um móbil de filiação política. O que me leva a concluir que a “esquerda” é a maior interessada na permanência de pobreza, na continuidade da injustiça social. Sem elas, a “esquerda” perde a razão de ser.
 
A “direita” tem a sua culpa nesta situação. Sentindo a necessidade em corporizar uma certa sensibilidade social, a “direita” deixou-se encantar pelo fenómeno da engenharia social que é tão caro à “esquerda”. A própria “direita” foi envolvida pelos modelos sofisticados de engenharia social que fazem do Estado a cura milagrosa para erradicar a pobreza e diminuir a injustiça social. Ignorando os efeitos negativos desta intervenção estatal. A intrusão na propriedade privada (através de impostos penalizantes da produção de riqueza e de outros mecanismos que pretendem tirar aos ricos para dar aos pobres) gera um efeito nefasto. Os ricos tentam fugir ao máximo, seja com a localização dos seus activos noutros países que sejam menos penalizadores, seja pela própria evasão fiscal.
 
Sem recursos é impossível pôr em marcha a política social activa que é tão grata à “esquerda” e à “direita” que se deixou inebriar pelas causas sociais. O resultado final é conhecido. Em vez do intervencionismo estatal contribuir para a diminuição da pobreza e da injustiça social, o mais que consegue é penalizar a produção de riqueza que é indispensável para que, mais tarde, os mais pobres saiam das difíceis situações em que se encontram.
 
É por isso incompreensível que ontem, a propósito da reacção das forças sociais à nomeação de Bagão Félix para ministro das finanças, o testa-de-ferro comunista na CGTP (Carvalho da Silva) tenha ilustrado, como exemplo negativo, o facto de na União Europeia os milionários terem crescido 2% enquanto em Portugal cresceram 4%. Qual é o mal desta situação? Não é a riqueza que vem alimentar, a prazo, mais rendimentos para os mais desfavorecidos?
 
A demagogia não tem limites! 
 

15.7.04

A importância do eleitorado feminino

Já se sabe que há mais mulheres do que homens. Em pouco tempo deu-se uma coincidência de acontecimentos que vieram mostram como a mulher é um factor decisivo na tomada de decisões. Não que sejam elas as detentoras do poder de decisão. Estou-me a referir à influência que as mulheres, enquanto sexo maioritário, podem ter na escolha dos decisores. A ideia é cristalina: se elas representam mais do que 50% do eleitorado, é preciso dedicar-lhes uma especial atenção para que elas sejam cativadas pelas propostas – ou por quem as apresenta, em bom rigor.

Como referia há pouco, deu-se uma notável coincidência em Portugal e nos Estados Unidos em relação à escolha de candidatos a certos cargos que se destacam pela atracção que cativam junto do eleitorado feminino. Cá em Portugal, o primeiro-ministro indigitado e o previsível líder do PS encaixam-se, de algum modo, neste estereótipo. Também a decisão do Partido Democrata dos Estados Unidos em escolher John Edwards para secundar John Kerry na corrida presidencial se funda numa motivação idêntica.

Hoje em dia, no mundo da política a imagem é determinante para o sucesso de campanhas. Cada vez mais a imagem passada para o exterior ultrapassa em importância o conteúdo da mensagem difundida, o alcance das propostas, a constelação de ideias que estão por detrás das propostas. O embrulho que embeleza os políticos é o factor chave, relegando para uma posição secundária a pessoa em si mesmo e as suas ideias (quando elas existem).

Assim se explica que os conselheiros de imagem que rodeiam os políticos sejam pagos a peso de ouro e imponham a imagem aos aconselhados sem que estes se possam desviar das orientações. Um cabelo fora do sítio, uma gravata levemente desalinhada, uma palavra mal colocada num discurso fabricado com requintes laboratoriais, um sorriso bem construído, os retoques de lifting que muitos políticos sofrem nos outdoors – eis o mundo artificial que caracteriza a vida política contemporânea. Mais importante é a luz dos holofotes, uma boa imagem junto do público. Por isso há que a construir meticulosamente, com labor e sapiência, para reunir a simpatia dos eleitores que vão no engodo desta estratégia.

Nos Estados Unidos, a escolha de Edwards pretende contrabalançar a péssima imagem mediática de Kerry. O concorrente de Bush Jr. já foi apelidado de Drácula, tal a imagem sombria e medonha que transmite. Edwards é um jovem e dinâmico político, um self-made-man que subiu a pulso. É conhecido pela simpatia por causas que favoreçam a classe média. E tem reputação junto do eleitorado feminino, pela sua boa aparência e pelo charme que exibe. Depois da sua escolha para candidato a vice-presidente, li algures que um dos motivos que concorreu para a escolha foi a sua aura junto do sexo feminino. Vê-se em Edwards um capital de simpatia junto das mulheres que pode ser decisivo para desviar votos deste eleitorado para os democratas. Isto pode ditar, de acordo com a análise, o vencedor das eleições.

Em Portugal, foram muitos os anticorpos em relação a Santana Lopes. Que saiba, ninguém justificou a sua escolha nos mesmos parâmetros enunciados a propósito de Edwards. Mas sabe-se que Santana é conhecido pelo sucesso junto das mulheres. Quantas vezes o sexo feminino se manifesta, embevecido, pelo charme do futuro primeiro-ministro? Sobretudo aquelas senhoras e donzelas que consomem avidamente as revistas cor-de-rosa, para as quais Santana tem sido um manancial de notícias bombásticas. E não há que desdenhar o potencial deste eleitorado. Basta ver a abundância de revistas cor-de-rosa e a tiragem que elas têm.

Com José Sócrates o fenómeno é idêntico. Ainda que não disponha da mesma aura junto do sexo feminino, já li análises que esboçam o charme do previsível líder do PS como factor explicativo da escolha. Ou seja, teremos uma arenga política, entre os líderes dos maiores partidos, baseada na quantidade de corações despedaçados imputada a cada um deles. Vamos entrar num período inusitado da vida política, dedicado à atracção do sexo feminino. Será uma corrida ao charme, com discursos e posturas mais viradas para atrair as mulheres.

Um dia destes, pelo caminho que levamos, o sucesso político ainda há-de ser medido por um concurso de charme entre os pretendentes ao estrelato político. Sinal da vacuidade em que vivemos. E da ditadura que as mulheres começam, de forma subtil, a exercer. Depois não se queixem que são o sexo fraco e marginalizado…


14.7.04


Parque da cidade

O segredo de uma árvore

Não sei o nome da árvore. Sei que é a única árvore que conheço assim. É a única que preenche o mapa botânico do parque. Ela é o cartão de visita para quem entra no parque pela sua entrada principal. Passa despercebida durante onze meses. Depois, subitamente, em meados de Junho começam a brotar umas bogas esverdeadas que anunciam as flores que estão prestes a irromper.

Chega Julho e, tímidos, uns pequenos tufos começam a erguer-se na vertical, rompendo da extremidade das bogas. Uns tufos vermelhos, que com o crescimento ruborizam e passam a vermelho escarlate. A magnificência da árvore está nestas flores que a cobrem em parte, dando uma tonalidade esfuziante à entrada do parque. Por um acaso da natureza, estas flores têm uma passagem fugaz. Não duram mais do que três semanas. Depois começam a mirrar, a perder o encanto da cor viva, definham até tombarem inertes no solo. Então a árvore volta-se a despir da veste engalanada que festeja o pino do Verão, hibernando na escuridão da folhagem verde que se refugia de uma invernia ainda distante. Até parece que a árvore desconfia dos caprichos da meteorologia e quer resguardar os delicados tufos encarnados das inclemências dos elementos.

Ver os primeiros raios de sol a bater nos tufos avermelhados é um espectáculo reconfortante. O vermelho vivo fica ainda mais luminoso com os raios que descem do sol. As cores ganham uma nova vida e resplandecem em todo o seu fulgor. A árvore respira exuberância ao ser batida pelo sol. Chama pelos pássaros e pelas abelhas que se saciam no pólen adocicado dos tufos vertidos pela folhagem. É uma fonte de vida, um quadro com pinceladas inebriantes. Vale a pena parar por uns instantes e apreciar este quadro, contemplar a beleza que irrompe, descontrolada, da natureza. Respirar bem fundo e sentir que são coisas pequenas como esta que merecem ser valorizadas. É um tónico que permite resgatar as forças e deitar para trás das costas o que há de lamentável à volta.

Pena é que a árvore seja contida na difusão da sua beleza. Quando chega Julho e deparo com a erupção de vida que dela brota, apetece-me reter esses momentos para os restantes meses do ano. Desejava que a árvore fosse generosa a mantivesse hasteado o seu esplendor por todo o tempo. É então que desço à terra: e reconheço que as coisas da natureza têm um lugar e um tempo próprios. Nada é feito ao acaso. E se a árvore tem a sua erupção floral apenas três semanas por ano, isso serve para concluir que se o quadro de esplendor perdurasse por mais tempo ele perderia a sua beleza.

As coisas querem-se na sua proporção. Nem menos, nem mais. Nem menos porque uma sensação de desconforto invade quem está à espera do quadro habitual, durante o tempo do costume. Mas também não vale a pena esperar por mais, correndo-se o risco de o valor que se atribui ao cenário bucólico e frondoso se esfumar na rotina. É a natureza o fiel da balança, que nos mistérios dos seus processos nos indica a devida proporção das coisas.


13.7.04

Carter, semi-anónimo: uma polémica?

Nas últimas duas semanas o(a) Carter tocou três vezes. Mimos com pouca simpatia, com acusações obtusas à mistura. Das duas primeiras tinha prometido não reagir. Afinal Carter é um pseudónimo que esconde um anonimato. Perante o anonimato a melhor reacção é a passividade. Mas, por outro lado, diz o ditado que “quem não se sente não é filho de boa gente”. Por isso, à terceira a coisa rachou.

Já não vem de agora a discordância do(a) Carter em relação ao que escrevo. Sobretudo quando mete política pelo meio. Com a passagem do tempo tem crescido a hostilidade nos seus comentários. Por exemplo, sugerindo que “eu deixe de me alimentar a iogurtes”, porque o mundo é bem diferente daquele que os meus olhos vêm. Confesso que não compreendi esta dos iogurtes. Não é um alimento nefasto para a flora intestinal. Até é aconselhado com abundância às criancinhas, o que deixa implícitos os seus bons efeitos para um crescimento saudável. Se me aconselhasses a não comer francesinhas, ou feijoada, petiscos que provocam avantajada flatulência que, no teu entendimento, me conduzem a uma visão enviesada do mundo, ainda entendia. Agora iogurtes…

Carter põe-me o rótulo de conservador. Que eu saiba (e até o confirmei no dicionário, sempre útil nestas ocasiões), conservador é aquele que quer manter as coisas no estado em que se encontram. Como se concilia o conservadorismo com outra acusação que me é dirigida – a de que digo mal de tudo e mais alguma coisa? Se tenho esta tendência detestável de aguçar a má-língua, é sinal que não estou satisfeito com o mundo que em que vivo. Logo, ser conservador é a antítese das minhas posições. Mas compreendo o(a) Carter: vê na minha repulsa às esquerdas a necessária conotação com a direita trauliteira, conservadora na verdadeira acepção da palavra. É a atitude típica do “quem não está do meu lado está contra mim” – traduzindo, se ele (que sou eu) critica tão abundantemente as esquerdas, é porque é de direita.

Caro(a) Carter: o mundo nem sempre e assim tão linear, tão redutível a um binómio ao jeito do “ou estás comigo ou contra mim”. Já sabes que as esquerdas me causam alergia. Considera-o exagerado se quiseres, mas é a minha posição genuína. A rejeição das esquerdas (repara que uso sempre a palavra no plural) não representa uma colocação “à direita”. Primeiro, porque da mesma forma que há “esquerdas”, há também “direitas”. Segundo, porque mesmo que para tua conveniência me queiras rotular de direita, definitivamente não sou conservador! Terceiro, porque também já bati sem piedade "nas direitas" que tu não gostas.

A outra preciosidade que já apareceu por duas vezes é o narcisismo que tu vês em mim. Também aqui me socorri do dicionário, por via das dúvidas. Bem sei que por vezes só nós recusamos a admitir certa característica que outros encontram nas nossas personalidades. Quantas vezes somos toldados pela dificuldade de não conseguirmos ver como somos porque é difícil olhar para dentro de cada um de nós? Apesar disso, reflecti no que escrevo e não consigo perceber onde estão os laivos de narcisismo de que me acusas. Ou te enganaste na palavra, ou estás a precisar de óculos.

Lamento que não seja de uma das esquerdas que se abarbatam com o monopólio da verdade. Lamento não ser como tu, tão altivo(a) da verdade, tão certo(a) de que eu vivo no mundo errado, ou que utilizo uma lentes avariadas que toldam as imagens que desfilam perante os meus olhos. É um estigma que tenho que carregar: a crítica contundente, a imperícia para avaliar coisas boas no comportamento dos outros. Negativista? Eu preferia ver a coisa por outra óptica: niilismo. Informa-te, caso não saibas do que se trata.

Aceita um repto: deixa cair a máscara do anonimato e desnuda-te. Aí talvez seja mais fácil ir mais longe na troca de palavras. Por uma sempre saudável polémica.

Retrato de um primeiro-ministro anunciado

Estava escrito nas estrelas – já o tinha dito antes, há uns anos, num daqueles congressos dos PPD-PSD que sempre abrilhantei. Disse que estava escrito nas estrelas que viria a ser o líder deste meu partido, um digno herdeiro do Dr. Sá Carneiro. O que os portugueses desconheciam era o verdadeiro alcance da minha profecia: ser primeiro-ministro. Se o meu antecessor disse, algures no tempo, que tinha a certeza que iria ser primeiro-ministro, só não sabia quando, porque me seria negada esta pretensão?

Esta ambição cresceu desde os anos em que andava de calções. Os meus colegas tinham as brincadeiras habituais. Jogavam futebol, às escondidas, encenavam tiroteios entre cowboys e índios. Talvez por ter sido precoce, aos oito anos já brincava à política. Imaginava-me num país democrático (sim, também aqui fui precoce; com tenra idade era um contestatário do regime, apesar de ser um contestatário silencioso). Tecia cenários imaginários acerca da luta partidária. Um partido de esquerda estava posto de parte. Os meus pais deram-me uma educação assisada, fazendo-me ver que o socialismo (nas suas mais variadas categorias) era nefando. Via-me, com deleite, a manobrar com mestria na arte dos golpes palacianos.

Com o correr dos anos esmerei-me na arte da retórica. Com a entrada na adolescência agarrei a primeira oportunidade para me afirmar no glamour da minha presença, com os dotes de oratória a prenderem desde cedo as audiências. Sobretudo as femininas, pois uma corte de damas descobrira em mim um charme acima da média. Com as hormonas à flor da pele, tive que dividir o meu tempo pela intervenção política e pelas conquistas de corações femininos. Foi aí que descobri os prazeres da vida nocturna. Discotecas, muitas discotecas, que eram o local indicado para o engate. Elas seguiam-me e eu aproveitava o ensejo para coleccionar namoradas.

Tentei estabilizar, porque um político que se preze tem que transparecer uma imagem de salutar vida familiar. Casei-me e tive filhos. Mas era impossível combater a natureza que corre, selvagem, dentro de mim. Era impossível resistir a um pé de dança e a um rabo de saias. Não demorei muito tempo a estar divorciado. Os flirts sucediam-se a uma velocidade vertiginosa. Mantinha uma vida frenética: de dia política, muita política; à noite copos, dança e mais miúdas. Conseguia conciliar as hormonas com a ambição política que se mantinha bem acordada. Depois de concluída a licenciatura (com nota brilhante, como tudo o que faço na vida, com o empenho que ponho nas coisas), lancei-me na política. Apercebi-me que tinha que me mexer bem, junto das pessoas certas, para escalar a difícil escada da vida.

Por artes do acaso (ou em por isso…) o Dr. Sá Carneiro cruzou-se na minha vida (ou o contrário, já não me recordo bem). Foi a sorte grande, o empurrão definitivo para o estrelato político. A partir daí foi sempre a subir – enfim, um percurso de altos e baixos, com algumas derrotas pelo caminho, mas sempre com a perseverança intacta. Entrei para o governo, cheguei a secretário de Estado da cultura. Aí fiquei conhecido por duas grandes obras: descobri os concertos de violino de Chopin, dando provas de como os musicólogos do mundo são uma corja de parasitas desatentos que nunca se deram ao trabalho de descobrir que Chopin tinha legado esta obra notável; e deixei obra feita com a marca do Cavaquistão, o Centro Comercial (perdão, Cultural) de Belém.

Mas o chefe tinha inveja do meu protagonismo. Tirou-me o tapete e obrigou-me a fazer uma travessia no deserto. Estive sempre atento às movimentações do PPD-PSD. Foi só esperar que os resquícios do Cavaquistão fossem varridos para entrar na disputa. Perdi várias vezes, mas nunca desisti. Apesar de várias declarações solenes de que iria abandonar a política – quando as coisas não corriam de feição, mas apenas como manobra para congregar vozes que pediam para repensar o meu acto… – isso seria impossível. Porque um peixe tem na água o seu habitat natural. Eu, fora da política, perco o oxigénio da minha vida. Como também perco a razão de viver se não andar na roda-viva do jet set nacional (que tanto ajudei a construir, com outros cromos do imaginário lisboeta que inundam as revistas cor-de-rosa – vou dar instruções para que se mude para cor de laranja – de que fui um notável impulsionador).

Agora a profecia cumpre-se. Lembro-me das tantas vezes que ficava parado perante o meu espelho e perguntava: “espelho meu, espelho meu, qual o destino que me reserva o futuro?” Ao que o espelho sussurrava, numa voz cavernosa mas convicta, “PM, meu filho, PM”. Lá cheguei. Sem ter construído um pensamento político. Mas quem precisa, nos dias que correm, de ficar preso às ideias? Os tempos são de pragmatismo. A melhor receita é navegar por estima, ser intuitivo, oscilar de um lado para o outro ao sabor do vento, ter projectos que nascem em cima do joelho mas que se distinguem pela sua aparência de brilhantismo. Sou um produto da vacuidade dos nossos tempos: atenção dada à embalagem, sem dar importância ao conteúdo.

Há quem me acuse de ser populista. Cá para mim têm inveja do meu percurso. E das miúdas que acumulei no meu curriculum (ou, no caso das críticas femininas, de não terem engrossado o curriculum). São uns invejosos. Se me aborrecerem muito, ainda chego à conclusão que o país não me merece e tento uma carreira internacional. Hollywood seria um bom lugar para receber um ex-primeiro-ministro!

12.7.04

Maus fígados

Tenho que dar a mão à palmatória. O que previ na quarta-feira não se cumpriu. Sampaio não decidiu com o coração, antes com a cabeça. Respondeu aos instintos de coerência que não se cansa de apregoar e deixou plantadas as amizades que ansiosamente esperavam por eleições antecipadas.

Não estava à espera desta decisão. Admito que a simpatia pelo presidente da república é nula, o que também desajudou para a formação das minhas expectativas. Daí a elevá-lo ao patamar da heroicidade – como, de forma oportunista, certa direita tem feito – é algo que me recuso a fazer. No fundo, Sampaio limitou-se a agir com sensatez. A ser aquilo que ele gosta de recordar sem cansaço – que é presidente de todos os portugueses. Não apenas presidente das esquerdas que o elegeram, como estas esperavam que ele fosse. Se há alguma ruptura com a prática instalada, essa é a boa notícia que emerge no rescaldo desta tormenta. O presidente da república agiu com responsabilidade e esquivou-se a saldar contas com as suas potenciais clientelas.

O epílogo foi pessoalmente gratificante. Não tanto pela solução de Sampaio, antes pelas suas consequências. Como ponto de partida, devo dizer que antever Santana Lopes como primeiro-ministro é algo que me deixa ainda mais pessimista do que o habitual. A decisão de Sampaio foi gratificante no plano pessoal devido às reacções desabridas das esquerdas, que já contavam como o ovo no rabo da galinha quando, afinal, o presidente da república o colocou no cesto dos ovos “da direita”. Ver toda esta gente a espumar raiva, a destilar o descontentamento, a renegar o apoio de outrora que levou Sampaio à presidência por duas vezes, encheu-me de satisfação.

Por um lado, confesso o gosto perverso de me deleitar com as decepções das esquerdas. Talvez seja pura crueldade, por sentir um terrível bem-estar quando esta gente dá com a cabeça na parede e é obrigada a vir a público, contristada, reconhecer a derrota. Encho-me de satisfação por os ver carrancudos, macambúzios, enraivecidos, desfiando a retórica violenta e argumentos patéticos. O trago amargo da derrota para esta gente é alimento saboroso para o meu bem-estar.

Por outro lado, estas reacções exageradas das esquerdas manifestam o que elas verdadeiramente são: pouco dadas à tolerância. Curiosamente, não se cansam de exibir a bandeira da tolerância como o que as distingue das direitas. Quando as coisas correm de feição, são as detentoras da patente da tolerância universal. Quando as coisas descarrilam, a máscara cai e lá se vai a tolerância pelo cano do esgoto. Fica então desnudada a verdadeira essência desta gente. O culminar da “crise política” foi outra exibição inequívoca que engrossa o rol de intolerância das esquerdas.

A desorientação das esquerdas adoçou-me a alma. Vê-las que nem baratas tontas a baterem impiedosamente em Sampaio é uma sensação incomparável. Esta reacção não foi uma indigestão. Foi uma autêntica diarreia que promete ter efeitos duradouros. Quando esperavam que o presidente da república lançasse a bomba atómica para destruir “a direita”, eis que a bomba caiu do outro lado! Não vale a pena gastar tempo com as reacções do PCP e do Bloco de Esquerda. É o radicalismo do costume – mesmo quando se arvoram em guardiães da democracia, ao atestarem que a democracia sofreu um duro golpe com a decisão presidencial. Como se esta gente fosse o melhor garante da democracia. Sabemos bem qual é o seu entendimento de “democracia” para os dispensar como figuras tutelares da democracia.

Patética foi a reacção de Ferro Rodrigues. Patética, e ao mesmo tempo sintomática dos podres da política. Ele considerou a decisão de Sampaio uma derrota pessoal. No meio da desorientação (que sempre o acompanhou enquanto líder do PS), Ferro invocou a amizade pessoal com Sampaio para justificar a sua derrota pessoal. Eis como se misturam as coisas na política. Eis como ficou exposto aos olhos de toda a gente o que se suspeita: que as decisões na política são tomadas em nome de clientelas, para satisfazer amizades, mesmo que essas decisões se afastem do bem-estar da maioria. Ao confessá-lo de forma despudorada, Ferro confirmou o que já se sabia: não faz falta nenhuma à política.

Duas notas finais. Para quê gastar mais tinta com as diatribes de Ana Gomes? Cada vez mais me convenço que as suas peixeiradas revelam uma personalidade castrada pelos anos em que foi diplomata, quando esteve agrilhoada à contenção verbal. Felizmente vai deixar de ter o protagonismo que o seu amigo Ferro lhe decidiu dar por uma temporada. Segunda nota: Boaventura Sousa Santos terá sugerido, na SIC, que existiu uma relação de causa e efeito entre a decisão de Sampaio e a morte de Lurdes Pintassilgo. Nada mau, para uma referência intelectual do país.

Ou as baratas ficaram estonteadas e ainda não conseguiram parar para assentar as ideias, ou isto apenas revela os maus fígados que têm e que ficaram mais visíveis que nunca. Inclino-me para a segunda possibilidade.

9.7.04


Parque eolico de Pena Suar, serra do Marao

Os ecologistas e os parques eólicos

A meio de uma caminhada pela serra do Marão, já no topo da serra deparei com torres encimadas por hélices com pás de generosas dimensões. O parque eólico estende-se pela arriba cimeira da serra, espalhando vinte geradores de energia que dão uma configuração diferente a esta e outras serras.

Na central que transforma a força do vento em energia eléctrica há um painel informativo que fornece abundantes dados sobre o parque eólico. Desde o tamanho das torres (44 metros), passando pela rotação média dos hélices, concluindo com a mensagem mais importante: a energia gerada por este parque eólico serve para alimentar uma povoação de 15.000 habitantes. O que mais impressiona, quando se está debaixo de uma destas torres, é o zunido soltado pelas pás dos hélices. Sobretudo quando, como então, o vento se faz sentir com intensidade. É um ruído compassado, debitando a velocidade das três pás que compõem cada hélice, em função da pressa do vento.

Para quem está habituado a ver ao longe estes parques eólicos, a sensação é diferente quando há uma aproximação física. O que ao longe parece uma instalação minúscula, transforma-se com a aproximação. As torres são altas, os hélices são grandes e a velocidade a que são impelidos mete respeito. À medida que os hélices são empurrados pelo vento e soltam um silvo furioso, parece que a torre se vai desintegrar e o hélice despedaçar-se com fragor em cima do visitante. A dimensão do parque eólico revela como a imagem de pequenez ditada pela distância a que estamos habituados é enganadora. É uma obra que impressiona – mais ainda porque a sua instalação obrigou a vencer as condições agrestes do terreno, a desbravar o xisto enrugado do topo da serra para que todo o material necessário pudesse ser transportado até ao cume.

Dizem os especialistas que esta é uma energia limpa. Apenas aproveita um elemento da natureza – o vento – para gerar energia. Consta também que o investimento necessário é elevado. Mais importante é avaliar o grau de fiabilidade dos aparelhos que geram energia. Caso o material não tenha propensão para anomalias técnicas, caso a sua manutenção não seja dispendiosa, todos os dados se conjugam para que esta fonte de energia seja o futuro.

E o que dizem os ambientalistas? Desdenham a energia eólica, argumentando que altera as condições naturais das serras. Os ambientalistas estão preocupados com a estética das serras, ajuizando que os parques eólicos desfeiam a paisagem, que pervertem a tradicional pureza de elementos que caracteriza as serras. Sendo contra a intervenção humana em ecossistemas que perduraram virgens à mão transformadora do Homem, os ambientalistas rejeitam a energia eólica. Ainda que seja uma energia limpa. Logo, em teoria, uma energia que seria do agrado dos defensores do meio ambiente.

A apetência para a contradição não é novidade entre os ecologistas. Tentam a todo o custo salvaguardar o meio ambiente e, perdidos no seu fundamentalismo, acabam por negar aquilo que defendem. Assim sucede com a energia eólica. Que se saiba, a instalação de parques eólicos é a única forma conhecida de aproveitar as potencialidades energéticas do vento. A transformação do vento em energia não produz resíduos poluentes como, por exemplo, a produção de energia através da queima de carvão. O único “impacto ambiental” (e aqui a expressão tem que aparecer grafada) deriva das preocupações “estéticas” dos ambientalistas. Estou de acordo que as serras são mais belas, mais genuínas, sem estarem preenchidas pelos hélices giratórios dos parques eólicos. Mas o que preferem? Que a energia seja produzida por meios poluentes, degradando ainda mais o ambiente? Ou alternativas menos agressivas para o meio ambiente, ainda que elas se traduzam num “custo estético”, e nada mais do que isso?

Os militantes defensores do meio ambiente nunca devem ter ouvido falar de decisões que, não sendo óptimas, são boas. Porque o óptimo é tantas vezes impossível de alcançar, quantas vezes nos temos que resignar perante o que é simplesmente bom? Mergulhados no seu fundamentalismo, estes ambientalistas perdem o norte e a razão. Primeiro, porque rejeitam uma fonte alternativa de energia que contribui para uma menor dependência de emergias poluentes – logo, vão contra o que defendem. Segundo, porque deste afã de defesa do ambiente transpira a imagem de que não olham a meios para atingir os fins desejados. Muitas vezes pergunto-me se estes ambientalistas não estariam dispostos a sacrificar o ser humano como espécie só para preservar o ambiente…

8.7.04

O trono

Frequentar ginásios é saudável para o físico. E por vezes também o é para a mente. Sobretudo em banhos turcos – pela relaxação que se consegue naqueles dez minutos de descanso final, após o suor desgastado no ginásio. Ainda que haja um factor aleatório: as pessoas que partilham o banho turco. É o mesmo factor aleatório que me afasta de pacotes turísticos do género “férias em grupo”: nunca se sabe quem vai calhar na rifa. Ao menos no banho turco o sacrifício é passageiro, não dura mais do que dez minutos.

Em muitas idas ao banho turco já apanhei conversas variadas, na maior parte das vezes “conversa meteorológica” – apenas para romper o silêncio, sem que haja substância e interesse na conversa. Também já deparei com sapiências doutorais, que dissertam com convicção sobre assuntos que ultrapassam a ligeireza com que são abordados. Análises políticas reaccionárias, dislates homofóbicos, até algumas tiradas racistas. As inevitáveis conversas sobre o futebol são um must. Por capricho da geografia, invariavelmente apanho com os fanáticos adeptos da colectividade azul e branca, incapazes de fazer interpretações lúcidas de um jogo de futebol.

Recentemente um destes diálogos ensinou-me algo que desconhecia. Quase posso dizer, utilizando o aforismo socrático, que é por estes episódios que se conclui que “só sei que nada sei”. Duas pessoas conversavam sobre os hábitos quotidianos. O que mais gostam de fazer ao longo do dia. Quantos cafés tomam e a que hora. Quantos cigarros fumam. A que horas almoçam. A certa altura um dos comparsas desviou a conversa para “o trono”. Uma conversa que até então se tinha revelado sensaborona, com traços de “conversa meteorológica”, despertou então a minha curiosidade. O que seria o trono?

Só comecei a perceber o significado metafórico do trono quando um deles disse que o pequeno-almoço tem um efeito catalítico que o leva imediatamente ao trono. O outro replicou que as reacções químicas no seu organismo que o levam ao trono só se desencadeiam depois do café matinal, tomado na empresa. O primeiro admitiu que gosta de prolongar as estadias no trono, aproveitando a ocasião para pôr alguma leitura em dia. O seu amigo revelou o estranho hábito de estar “sentado no trono” enquanto fuma um cigarro.

Desta troca de palavras compreendi finalmente que o trono é a sanita onde evacuamos. Eis como uma conversa que era desinteressante acabou por se revelar proveitosa. Aprendi uma expressão idiomática que se utiliza aqui pelo norte. Para minha surpresa, até porque sou um portuense de gema, e portanto julgava que possuía um conhecimento aprofundado das expressões típicas dos meus conterrâneos. É por isso que a conversa se transformou numa lição produtiva, traduzindo o citado axioma socrático. Naquele dia saí do banho turco com o conhecimento enriquecido – pelo menos no que diz respeito ao vocabulário que apela à utilização de metáforas.

É interessante saber porque razão algumas pessoas entronizam a sanita onde defecam. Nos tronos sentam-se os soberanos, os reis que governam os súbitos e por eles são cortejados. Quem tem lugar no trono é o senhor supremo. Ao transformar a sanita no trono, há uma imagem eivada de simbolismo: um momento de recolhimento, um daqueles momentos de intimidade do ser, em que cada indivíduo é senhor de si mesmo. Não é por acaso que na linguagem popular se costuma dizer, nestas ocasiões, que “vou fazer algo que ninguém pode fazer por mim”. Eis como se expõe a soberania suprema do indivíduo sobre si mesmo. É nestes momentos que nem sequer um Estado intrusivo interfere com os seus súbditos. É nestes momentos que o indivíduo se liberta da tutela paternalista do Estado e fica senhor de si mesmo. Para coroar o simbolismo do momento, nada melhor do que transformar a sanita num trono que consagra a soberania individual de cada pessoa. Será esta a explicação para a utilização do trono neste contexto?

Depois de alguns dias embrenhado na política, hoje o tema virou para a escatologia. Em bom rigor, não há grande diferença entre política e escatologia. Sobretudo quando assistimos ao triste espectáculo dos últimos tempos, ao que se convencionou chamar “crise política”, e a todo o cortejo de declarações, pressões, sugestões. Entre isto e a escatologia, quem consegue detectar a diferença?

7.7.04

A decisão de Sampaio

Para finalizar a análise da “gravíssima crise política”, algumas palavras sobre a decisão final que está nas mãos do presidente da república. Que tanto pode dissolver o parlamento, convocando eleições antecipadas, como manter a assembleia da república, convidando os partidos da coligação a formarem um novo governo. A Constituição autoriza ambas as decisões, o que tem complicado bastante a vida a um presidente que tem pautado os seus mandatos mais por uma retórica impenetrável e não tanto pelo hábito de decisões. Afinal, é este o papel pouco mais do que simbólico dos presidentes da república no actual sistema político. Só se lhes reserva verdadeiro protagonismo em situações limite como a que se vive hoje com a demissão de José Barroso.

Sampaio estará dividido entre uma decisão de ruptura e outra de estabilidade. O dilema que assalta a consciência de Sampaio é de maior dimensão: ele está dividido entre as palavras que escreveu no passado (favorecendo a estabilidade política) e a vontade íntima de satisfazer solidariedades políticas que assomam à superfície de forma irreprimível. Não quero fazer o papel de prestidigitador que tenta adivinhar o pensamento de outrem. Apenas tirar algumas conclusões dos sinais enviados ao longo destes dias.

A pergunta que se impõe é a seguinte: qual vai ser a decisão de Sampaio? Agora que se apresta a concluir a romaria ao palácio presidencial, Sampaio vai ficar sozinho com a difícil incumbência de tomar uma decisão. Sobretudo porque Sampaio deve estar dividido entre a decisão que quer tomar e a que deve tomar. Afectivamente, não restam dúvidas de que Sampaio opta por eleições antecipadas. A sua simpatia pela “direita” que nos governa é pouco mais do que nula. Sempre esteve barricado naqueles sectores do PS mais situados à esquerda. Foi presidente da câmara de Lisboa numa coligação com os comunistas. Consta também que Sampaio engrossa o rol de pessoas que não nutre simpatia por Santana Lopes, desconfiando da solução escolhida pelo PSD (e pelo CDS-PP) para a continuidade governamental.

Depois dos tais “sinais” que as esquerdas viram no tarot das eleições europeias, esta é a ocasião ideal para se fazer a ruptura com os dois anos de governação “da direita”. É o momento adequado para que se dê continuidade à retumbante derrota eleitoral “da direita”. Mais importante do que isso, permitir que a esquerda (ou as esquerdas, numa qualquer combinação resultante de uma coligação pós-eleitoral) venha para o cadeirão do poder, fazer o bem e destruir o tanto mal que “a direita” andou a fazer nestes dois anos.

Sampaio tem a seu favor um elemento que o pode empurrar para a decisão de eleições antecipadas: este é o seu último mandato. Apesar de haver quem acredite no palavreado sampaísta - de que um presidente (como ele) é um árbitro imparcial – não sou ingénuo ao ponto de acreditar nesta verborreia. Jorge Sampaio pode-se arvorar em “presidente de todos os portugueses”, como gosta de repetir até à exaustão. Talvez por não gostar da personagem, não acredito na sua isenção. E vejo no exercício do seu último mandato a oportunidade para actuar sem compromissos, apenas respeitando a sua vontade e os apelos da sua consciência. Não creio que queira ficar na história como um presidente imparcial que traiu os seus camaradas socialistas. Acima da sua condição de presidente, Sampaio deve prezar as fidelidades partidárias que foram o manancial que lhe trouxe a presidência da república por dois mandatos sucessivos.

Depois cheira-me a esturro o cortejo de “figuras” (e figurões) que tem passeado a sua douta opinião pelo palácio de Belém. Sampaio quer passar para o exterior a mensagem de que está a ouvir a sociedade civil. Suspeito deste processo consultivo. Parece-me um pretexto para esconder uma decisão que, no seu íntimo, deve estar tomada há já algum tempo. É mais fácil tomar a decisão depois de passada a imagem de um alargado e demorado processo de consultas. A imagem é cristalina: a decisão tomada, depois de escutadas tantas pessoas, será o espelho de um sentir maioritário. A sua decisão não será órfã, antes o resultado de um “consenso alargado”. Meio caminho andado para a desresponsabilização de uma decisão que lhe compete tomar.

Ontem ouvi Portas (o do CDS-PP) a fazer um apelo à memória de Sampaio. O líder do CDS-PP resgatou as intervenções políticas de Sampaio, onde estavam registadas com objectividade as condições para a dissolução do parlamento. A minha convicção é que Sampaio vai fazer tábua rasa das tais condições objectivas enunciadas há três anos. O apelo afectivo é mais forte. Chegou a hora de pagar a factura pelos apoios do passado. O presidente da república irá demonstrar que é, acima de tudo, amigo de certas facções. Cairá a máscara do indivíduo que não se cansa de apregoar que é “presidente de todos os portugueses”.

Gostava que esta previsão pudesse ser desmentida pelos factos, amanhã, dia em que se anuncia a decisão de Sampaio. Oxalá pudesse vir aqui escrever que estava enganado na minha análise, e que Sampaio me surpreendeu, uma vez na vida, pela positiva. Temo que não haverá lugar ao meu arrependimento.

6.7.04

Crise política?

Nestes dias de euforia colectiva, subitamente arrefecida pelas investidas traiçoeiras dos helénicos, anda por aí muita gente que perdeu o norte. Ignoro se a engenheira Lurdes Pintassilgo é aficionada pelo futebol em geral e pela selecção nacional em particular. Desconheço se a senhora foi apanhada pela bebedeira colectiva que vestiu o país de norte a sul. Não sei se terá sido esse arroubo de emoção que lhe perturbou a razão. Ou se apenas são os descaminhos da idade que passa e deixa as suas marcas. Lavrada fica a falta de razoabilidade nas palavras de Lurdes Pintassilgo, a meio da romaria de “personalidades” que Sampaio decidiu escutar para tomar a sua decisão sobre a “crise política” em que Portugal mergulhou.

Lurdes Pintassilgo disse, com o ar doutoral que a acompanha, que esta é a maior crise política desde o 25 de Abril de 1974. Os desvarios de Vasco Gonçalves; os desmandos dos capitães que se arvoraram em senhores da coutada nos tempos saudosos do PREC; a instabilidade política de finais dos anos 70, princípios da década de 80 (com os sucessivos governos de iniciativa presidencial); nada disto é comparável à profunda e grave crise política que varre o país em pleno 2004.

Ou a engenharia tem memória curta, ou enferma de graves lapsos de análise. Passar uma esponja sobre aqueles episódios lamentáveis é branquear um passado ignóbil que deixou marcas bem mais visíveis do que a actual “crise” governativa. Não me vou dar ao trabalho de resgatar as memórias do baú para recapitular o que de dantesco se passou nos momentos que há pouco identifiquei. Mais importante é responder à seguinte pergunta: a ida de Durão (Barroso, José Manuel Barroso, na União Europeia) para a Comissão, com a queda do governo, instalou uma crise política?

As crises deste calibre existem quando há um vazio governativo, quando não é possível reunir uma maioria parlamentar de suporte a um governo estável, quando se suspeita que os alicerces do regime estão sob ameaças golpistas. O que se passa na actualidade não se enquadra nestas características. O governo cai com a demissão do primeiro-ministro. Mas, em regimes parlamentares, os governos são constituídos em função de um parlamento que lhes dá existência. Quando as esquerdas pedem com insistência que Sampaio convoque eleições antecipadas, há uma grande confusão no ar: a queda do governo não implica a dissolução da assembleia da república. Uma coisa não leva à outra. Tanto mais que os partidos que sustentam a coligação governamental mantêm o suporte parlamentar a um novo governo que emane desta maioria parlamentar.

A “crise” é uma invenção das esquerdas que leram nas estrelas, quais astrólogos de vão de escada, que os resultados das eleições europeias são um sinal inequívoco do descontentamento popular. Como se os dois terços de abstencionistas não prejudicassem o juízo. Como se das eleições para o Parlamento Europeu se pudessem tirar ilações tão claras sobre o sentir popular acerca da governação. Se assim fosse, todos os países da União Europeia (à excepção da Grécia e da Espanha) teriam que avançar para eleições antecipadas. Que se saiba, nestes países não há o clamor popular para eleições antecipadas. Talvez porque aí se manifestem sinais de maturidade democrática que andam arredios entre nós…

É compreensível o afã das esquerdas. Olham para este acontecimento como uma oportunidade de ouro para regressarem ao poder (PS; e Bloco de Esquerda, que anda, de mansinho, a cortejar os saiotes do poder). Esta gente foi educada a mamar na teta do Estado, banqueteando-se à custa do erário público, tragando irresponsavelmente os impostos que são pagos por quem trabalha de verdade. Para o futuro ficam declarações do inefável “Tozé” Seguro. Advertiu os portugueses que a única intenção de Santana Lopes como primeiro-ministro é gerir o calendário político durante os dois anos que faltam até se esgotar a legislatura. Aproveitar estes dois anos para o regabofe total, com um eleitoralismo sem precedentes. Para que então as eleições fiquem mais fáceis para o PSD-CDS. A jovem promessa socialista escusava de se desnudar perante o público. Era desnecessário confessar o que o PS faria se estivesse nas circunstâncias em que possivelmente Santana Lopes estará.

Às vezes, quando se abre a boca em busca de notoriedade e protagonismo, ou entra mosca ou sai asneira! E depois vêm dizer que é o PSD e o CDS que estão agarrados ao poder…Tudo farinha do mesmo saco! Sem excepções.

5.7.04

Delírios com uma bola de futebol

Noticiário da RTP, ligação em directo ao exterior do hotel onde estava hospedada a equipa da Grécia. O jovem repórter desfia a informação “relevante”, para que a audiência sacie a sua curiosidade sobre as actividades dos gregos. A culminar a sua intervenção, o jovem repórter, embriagado pela bebedeira colectiva que atingiu o país nas últimas três semanas, concluiu com a seguinte exclamação: “as epopeias literárias já pertencem ao passado. A Grécia prepara-se agora para as epopeias futebolísticas”.

O que dizer acerca da verborreia escorregadia e desbocada dos jovens jornalistas excitados com o evento futebolístico? O repórter de rua sentenciou que as epopeias, as verdadeiras e legítimas epopeias que fazem parte do património cultural da Grécia antiga, dão agora lugar a outro tipo de “epopeias” (a palavra aparece propositadamente grafada). Estas “epopeias” contemporâneas têm como intérpretes os guerreiros dos estádios de futebol, os novos heróis helénicos. Os filósofos da antiguidade, os famosos escritores que a Grécia antiga legou à humanidade, cedem o testemunho aos narradores das novas “epopeias” que enaltecem a nova Grécia. A cultura cede o seu lugar ao futebol, o grande elixir do povo, diria mesmo o novo ópio do povo – agora que com a dessacralização dos novos tempos a religião deixou de ter um lugar venerável a alimentar-se da ignorância das massas.

Sei bem que há que relativizar as palavras excitadas do jovem repórter da RTP. Inebriado pelo momento, deixou-se invadir pela emoção que toldou a racionalidade e o rigor que devem ser apanágio da imprensa. Sei bem que a expressão que ele utilizou, ainda que lida como uma metáfora, é exagerada. E, como tal, deve-se dar o devido desconto à sentença lavrada pelo imberbe repórter. Ou mesmo desvalorizá-la na totalidade, porque ela não corresponde ao sentir de quem pensa a sério nestas coisas.

Mas é neste aspecto que a exclamação que põe no mesmo patamar as epopeias literárias e as “epopeias futebolísticas” não pode cair em saco roto. O tal sentir especializado é abraçado por uma escassa minoria de conhecedores. A maior parte da população consome avidamente o produto futebol e toda a entourage de praticantes, dirigentes e jornalistas que gravita em seu redor. Sobretudo em momentos de intensidade mediática – como os campeonatos da Europa e do mundo – estes são os grandes fazedores de opinião. Eles determinam a agenda mediática, influenciam os critérios que seleccionam as notícias. As mensagens veiculadas têm um impacto determinante na configuração da opinião pública.

É neste contexto que é preocupante que um profissional da comunicação social pense (?) que os feitos da selecção grega são o substituto das epopeias literárias. É esta a imagem que fica gravada na cabeça de incautos e de outros que seguem apaixonadamente o campeonato. Uma imagem distorcida, espelho de uma retorcida ideia de quem tenta misturar água com azeite e espera que da mistura surja uma osmose harmoniosa dos dois líquidos.

Quem sabe se, daqui a algumas gerações, a Grécia passará a fazer parte do imaginário de tais gerações pelas ditas “epopeias futebolísticas”? Se a democracia é o governo da maioria, e se a maioria anda apanhada pelos pontapés na bola de vinte e dois artistas, não estranho que sejam estes gostos a condicionar a evolução. As artes plásticas e as letras estarão condenadas a vegetar num recôndito e clandestino canto da notoriedade pública. Os artistas da bola terão então o seu verdadeiro reconhecimento, vertido em enciclopédias ocupadas esmagadoramente pela “arte da bola”. A metamorfose da cultura na sua expressão sibilina.

Serão ventos passageiros, fruto de um país que andou com a bola na cabeça (ou com a cabeça na bola)? Ou uma tendência que se vem consolidando, expressão das regras democráticas que expõem os gostos das maiorias como os gostos que dominam uma sociedade numa determinada era?