1.6.04

Os políticos insultam-se?

Como estive alguns dias ausente do país, não acompanhei o arranque da campanha eleitoral para as eleições ao Parlamento Europeu. Aliás, não tenciono gastar o meu tempo a ler ou ver o que se tem passado durante a campanha eleitoral. Já basta a profusão de cartazes que enxameia a cidade, e que os olhos não conseguem evitar. Apesar desta declaração de intenções, ontem li algures o título (mas não a notícia) de que a campanha eleitoral estava a ser marcada pela baixeza do discurso dos candidatos, por ataques pessoais, por linguagem ofensiva, senão mesmo insultuosa.

Não aprofundei o teor da notícia. O cansaço da política doméstica é tão grande que não quero adensar a náusea indo a fundo nestas questiúnculas estéreis, que uma vez mais distraem a atenção dos cidadãos para a baixa política, desviando-os do que interessa discutir – ideias, projectos, um devir (neste caso) relacionado com o futuro da União Europeia. O que chama a minha atenção é saber se na arenga entre candidatos de diferentes formações políticas aquilo que é julgado insultuoso constitui mesmo insulto, na verdadeira acepção da palavra, ou se não passa de uma manobra retórica para alcançar o objectivo final (ter mais votos do que o adversário). O problema pode ser formalizado de outra forma: a troca de acusações entre os candidatos deve ser interpretada literalmente? Ou devemos descontar o calor da luta política, aceitando que se resvale para excessos de linguagem, apenas porque tais meios são necessários para atingir o fim último de um acto eleitoral?

Não consigo perceber as preocupações pedagógicas que certos sectores, diria “moralistas”, procuram imprimir à luta política. Insurgem-se contra os excessos de linguagem, deploram os discursos que descaem para a tibieza do insulto. Diz-se que os políticos deviam ter tento na língua, como exemplo para os cidadãos. Discordo em absoluto. Então não é verdade que os membros da classe política, principalmente os que se submetem a sufrágio popular, são os representantes do povo? Se representam o cidadão comum, porque não hão-de os eleitos ser uma emulação de quem representam?

É aqui que temos que desviar a atenção para as narrativas correntes entre a pessoa comum. As preocupações cosméticas com o discurso não abundam. Basta andar pelas ruas, parar em mesas de cafés, ir a restaurantes, ou a um bar. E ver que a linguagem corrente entre pessoas “normais” não tem os pruridos que os ditos moralistas gostariam de associar ao debate político. Os palavrões andam à solta. Amiúde, as pessoas referem-se de forma menos abonatória a outros que não estão presentes. Vulgarizou-se o calão que, sendo levado à letra, é insultuoso. E, no entanto, raras são as vezes em que os atingidos pelos “insultos” reagem. Algumas dessas expressões, que são insultuosas se interpretadas literalmente, constituem hoje expressões idiomáticas.

Ora se é isto que sucede correntemente entre o cidadão comum, e se continua a aceitar-se a ideia de que os eleitos representam os eleitores, porque não hão-de os políticos pautar o seu discurso pelo mesmo diapasão? Porque não hão-de eles resvalar para as tais expressões que são cada vez menos insultuosas e mais idiomáticas? Com a vantagem de termos a retórica política mais apimentada, sem os salamaleques que hoje imperam, em que se ofende sem estar a ofender, em que os membros da classe política se ficam pelas meias tintas – afinal corporizando aquilo que deles se conhece: nem fazer, nem deixar que os outros façam obra.

E com outro aspecto positivo: se os políticos falassem entre si como fala o cidadão comum, quem sabe se este não se passaria a identificar mais com o fenómeno político? Meio caminho andado para combater o congénito problema da abstenção, logo para conferir mais legitimidade ao processo político e de varrer o espectro da crise que afecta a democracia contemporânea?

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