14.6.04

No rescaldo das eleições

Ontem, encerradas as salas de voto, iniciados os programas de informação sobre as eleições, quis evitar uma auto-punição desnecessária. Fugi a sete pés dos programas televisivos que já instalaram uma rotina nas noites eleitorais. Com os comentários feitos por painéis de comentadores que são membros dos principais partidos, como se isso fosse um exercício de imparcialidade e de rigor de análise política. Com o desfile de outros analistas que, na maior parte das vezes, querem passar um manto de imparcialidade política mas deixam-se levar pelas suas simpatias ideológicas ou conveniências momentâneas.

Nesta noite apenas sintonizei por breves momentos um dos canais, logo às 20 horas, para ter uma primeira ideia das sondagens à boca das urnas. Para saber qual a taxa de abstenção prevista e as primeiras projecções de resultados. Este é um acto curioso para quem se quer alhear do fenómeno político nacional. Tentando ficar à margem do que se passa na política, não consigo afastar-me dos resultados de um escrutínio. Trata-se de uma simples curiosidade científica. Própria de um cientista político interessado no fenómeno eleitoral, tentando avançar explicações para as variações de resultados entre as forças políticas. Sem me enredar em politiquices espúrias, mais próprias de quem se deixa mergulhar na luta partidária e perde o norte, enganando sistematicamente o eleitorado.

Dos despojos das eleições restam algumas ilações. A mais importante é pouco valorizada pela comunicação social “de referência” (aquela que vive em intimidade com as forças políticas dominantes) e quase esquecida pelos partidos concorrentes. Refiro-me à taxa de abstenção, que subiu aos 61% – a grande vencedora do acto eleitoral. Nenhum partido conseguiu obter tantos votos quanto o número de pessoas que se abstiveram, reiterando uma constante das últimas eleições, sejam elas para a presidência da república, para a assembleia da república ou para as autarquias.

Nem todos os partidos deixaram passar em branco a elevada abstenção. A coligação do governo, com um resultado muito aquém do que era esperado pelo PSD e pelo CDS-PP, não demorou a desvalorizar os resultados das eleições devido à taxa de abstenção recorde. Claro que o fez para minorar as consequências negativas da derrota sofrida nas urnas. Como também é inquestionável que se estes partidos tivessem saído vitoriosos das eleições o seu discurso seria diferente, desvalorizando a elevada abstenção.

O resultado das eleições acaba por penalizar mais o presidente da república do que a coligação que está no governo. Não digo que não haja ilações a retirar por parte dos partidos que sustentam a coligação governamental. A conjugação da elevada abstenção com a diferença de votos entre o PS e a coligação do governo leva a uma leitura de sentido único: muitos eleitores decidiram penalizar o governo, manifestando alguma insatisfação pela condução da política governamental. O que também não é surpreendente, atendendo a que estamos a meio da legislatura.

Como acontece em qualquer parte do mundo onde exista uma cuidadosa gestão do calendário político, a primeira metade da legislatura está reservada para as políticas impopulares que constroem o espaço de manobra para políticas mais populistas que arrepiam caminho a um resultado eleitoral mais simpático para as forças que estão no governo. Basta ver o que se passou noutros Estados membros, para concluir que numa larga maioria deles o partido mais votado não foi o que está no governo. Tomando como amostra os maiores Estados membros, apenas na Espanha o partido mais votado é o que está no governo – na Alemanha, na França, na Itália e no Reino Unido, foi a oposição que saiu vencedora das eleições.

É neste contexto que Sampaio é o maior derrotado das eleições. Por ter dramatizado à exaustão o apelo ao voto, tentando convencer os eleitores da necessidade em ir às urnas devido à importância da União Europeia para o destino de Portugal. Dramatização que foi acentuada para forma abrupta e trágica como a campanha eleitoral foi interrompida. Em momentos destes, com a tendência para a comiseração que é inata ao povo português, pensava-se que a taxa de participação fosse mais elevada. Quem mais se empenhou em combater a abstenção é, pois, o grande derrotado das eleições.

Da parte das esquerdas, nem um comentário à fraca participação nas eleições. Para quem ganha eleições nunca é conveniente interpretar o significado de uma abstenção que representa um número superior aos votantes nessa força partidária. Fazê-lo retira brilho à vitória eleitoral. Contudo insiste-se no pecadilho que atravessa a generalidade das democracias contemporâneas: desvalorizar o significado da abstenção, passar ao lado das suas possíveis interpretações. Aprofundar este debate será pouco cómodo para os políticos profissionais. Poderá por em evidência como grande parte do eleitorado não se revê na actuação política, como se tem acentuado o fosso entre os representados e os representantes – em suma, uma crise no sistema de representação que é uma pedra de toque para a crise de legitimidade das democracias contemporâneas. Será sensato ignorar que quase dois terços dos portugueses não foram às urnas?

Uma derradeira ilação que retiro destas eleições (e que tem estado ausente das análises que li até agora). Na extrema-esquerda, os resultados encerram uma surpresa: o Bloco de Esquerda ficou-se por metade da votação do PCP, quando as sondagens reveladas nas semanas anteriores às eleições anunciavam uma proximidade entre os dois partidos. Afinal a vitória do Bloco de Esquerda, anunciada com entusiasmo pelos próprios e pela comunicação social sempre ávida em prestar vassalagem a este partido, deve ser relativizada.

2 comentários:

Anónimo disse...

Quem são os 61% de abstencionistas?
Uns que não acreditam nos actuais políticos, outros que não acreditam no nosso sistema político, outros que preferem a praia, outros que se esqueceram, outros que acham que o seu voto não vai ter "peso", outros que perderam o cartão de eleitor e só se lembraram disso no dia das eleições, etc, etc...
Enfim, é impossível definir a sua motivação e, como tal, também qualquer conclusão pode ser errada.
Continuo a achar que quem não vai votar, não tem, no nosso sistema democrático, legitimidade para contestar os que depois são eleitos. Esse protesto deve ser feito nas urnas através do voto em branco ou até o nulo. A não ida às urnas é uma mensagem demasiado vaga e ampla para poder ser interpretada de forma conclusiva.
E quem não aceita isto, que sugira outro sistema melhor!
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

A velha discussão sobre a abstenção com o meu amigo Ponte Vasco da Gama! Umas breves notas:
1. Da mesma forma que não é possível tirar ilações sobre o valor da abstenção, também a "não conclusão" é uma solução perigosa. É como o avestruz, que mete a cabeça debaixo da areia para fugir ao problema - como se ele não existisse.
2. É verdade que as motivações da abstenção são variadas. E que os políticos gostam sobretudo de se agarrar à estafada ideia de um belo-dia-de-praia-que-não-convidava-a-votar (como se estivessemos todo o dia na praia...). Mas é importante estudar com cuidado os outros motivos, decerto válidos, que fomentam a abstenção. Quanto mais não seja para tentar salvar o regime democrático das tentações totalitárias de certos personagens da esquerda radical que não se cansam de exteriorizar o que há de pior em termos de intolerância.
3. Já agora, quando se afirma que os não votantes não têm legitimidade para criticar, é preciso ter cuidado porque esta afirmação é totalitária. Enquanto o direito de voto não for convertido numa obrigação legal (punida com multa, como na Bélgica ou na Austrália, por exemplo), não ir a votos é um direito tão legítimo como colocar o voto. Ir contra isto é atentar contra um valor sagrado: a liberdade individual!