28.4.04

A “incultura” nacional

Há dias li um interessante comentário de Maria Manuela Leitão Marques no blog Causa Nossa. Ao ler este texto fui assaltado por diversas experiências negativas que tenho acumulado ao longo de onze anos de docência universitária. Eis o texto:

Muito mais que não saberem ciências, literatura, história ou geografia, onde os conhecimentos dos jogadores do concurso «Um contra todos» da RTP1, previamente seleccionados e em geral licenciados, são até, muitas vezes, acima do esperado, é impressionante a falta de cultura de cidadania. Com medo, raramente alguém ousa passar do nível mais fácil e ouvem-se as respostas mais incríveis, mesmo sobre questões que ocupam os jornais ou são debatidas em programas de televisão. Esta semana, uma concorrente interrogada sobre a quem se referia Humberto Delgado quando disse “Obviamente demito-o”, entre Oliveira Salazar, Américo Thomaz ou Marcelo Caetano, escolheu este último. E quando o animador do concurso, algo intrigado, lhe perguntou quem tinha sido Humberto Delgado, respondeu com alguma hesitação: «Presidente da República». É caso para dizer que, embora tarde, fez-se justiça e que os resultados viciados das eleições presidenciais de 1958 foram corrigidos!

Foi esta enorme confusão com a história do Estado Novo que me trouxe à memória um tristemente delicioso episódio passado num exame oral. Notei que a aluna estava nervosa. No meio do desnorte em que a aluna caiu passados alguns minutos, pedi-lhe para situar a posição de Portugal perante os esforços internacionais da ajuda aos países mais pobres. Quando entrou no derradeiro período, que corresponde à normalização da posição de Portugal na sequência das primeiras eleições legislativas após a revolução de Abril de 1974, a aluna descarrilou.

Para situar o leitor no contexto: após o 25 de Abril de 1974, o país atravessou uma fase conturbada, com o lamentável pacto MFA-povo, o protagonismo de militares com escassa cultura democrática, o tenebroso período do PREC. A posição de Portugal no contexto da cooperação internacional ia ao sabor das ondas aventureiras do momento. Queríamos ser amigos dos países do terceiro mundo, simpatizava-se com o modelo de auto-gestão da Jugoslávia. Tudo para encapotar uma discreta aproximação a Moscovo. Só com as eleições de 1976, em que o PS de Soares saiu vitorioso, o país regressou à normalização. Reafirmou-se a aliança com a NATO e o país voltou a afirmar a sua apetência para alimentar o desenvolvimento de países mais pobres.

Como a aluna andava perdida à procura da resposta, decidi dar umas pistas para lhe avivar a memória. Foi pior a emenda do que o soneto. Tentei ajudá-la perguntando-lhe quem tinha vencido as primeiras eleições depois da ditadura ter sido derrubada.

- Marcello Caetano, respondeu.

Atónito, disparei logo de seguida outra pergunta, só para saciar a minha curiosidade.

- Diga-me quem era o primeiro-ministro quando a ditadura foi derrubada.

- Salazar.

Sem palavras, olhei incrédulo para o colega que fazia comigo o júri daquele exame oral. Fiquei sem reacção, senti-me de mãos e pés atados pelas respostas lacónicas, mas com uma enorme convicção, dadas pela aluna. O meu colega tentou compor as coisas:

- Paulo, ela não tem culpa. Quem a deixou chegar até aqui é que tem culpa.

Anui. A culpa é mesmo de quem a deixou chegar àquele patamar da sua vida de estudante na posse de tais conhecimentos, empunhando uma impreparação tão acentuada. Este foi apenas um entre inúmeros casos que davam para preencher páginas e páginas de um livro trágico-cómico. Nem imaginam a quantidade de alunos que, numa disciplina do 1º ano da universidade, acham que o Canadá e os Estados Unidos entraram para a União Europeia num dos sucessivos alargamentos que a União já conheceu. Malfadada geografia: como se aqueles países estivessem situados na Europa!

Não atribuo a culpa a esta geração. Não sou daqueles que pensa que esta é a “geração rasca”. Não. Esta é a “geração à rasca”, colocada nesta situação precária por sucessivas levas de pedagogos de meia tigela que andaram entretidos a inventar reformas curriculares que fizeram desta geração a cobaia do sistema educativo. Rasca é quem colocou esta geração à rasca.

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