12.3.04

“Desvirtualizar”, pois

Numa pausa entre duas aulas, estava na sala de professores a passar o tempo, olhando para as notícias que iam aparecendo no computador situado à minha frente. Ao meu lado estavam dois colegas que atendiam um aluno. Não percebi se seria sobre um trabalho para uma disciplina ou sobre a tese de licenciatura desse aluno. A certa altura a minha colega disparou, com voz professoral, ritmada e monocórdica, que temia que o aluno estivesse a “desvirtualizar” o trabalho. Pensei com os meus botões: enganou-se, se calhar ela queria dizer desvirtuar, mas soltou-se uma sílaba a mais e saiu “desvirtualizar”. Afinal todos podemos ter destes lapsos: quantas vezes a língua se atropela no cérebro e a palavra não sai como nós a conhecemos?

Enganei-me. Não tardou nem um minuto para que a coleguinha tenha utilizado por mais duas vezes, em duas frases consecutivas, a palavra “desvirtualizar”. Pelo contexto do discurso, compreendi logo que o que ela queria dizer era desvirtuar. Ela exprimira a preocupação de que o aluno estivesse a levar o trabalho numa direcção que seria equivalente à falsificação dos seus propósitos originais. Em bom português, isso corresponde a desvirtuar – nunca a “desvirtualizar”.

Como tenho noção da minha falibilidade, decidi consultar um dicionário on-line, já que a ferramenta estava mesmo ali à frente. Confirmei que a palavra não existe. Como estava na presença de uma colega que trabalha numa área que é dada a distorcer palavras para apresentar conceitos inovadores, ainda duvidei se esta palavra não seria um neologismo. Na área em que a coleguinha se apresenta como uma especialista, a realidade virtual é cada vez mais uma ferramenta imprescindível para o trabalho. Suspeito que ela se deixou inebriar pela ascensão meteórica da realidade virtual e confundiu “desvirtuar” com “desvirtualizar”. Perdeu então a virtude do dom da palavra, com aquela sua pose de quem se acha emproada na figura de um vetusto catedrático (mesmo para quem é ainda uma pessoa de tenra idade em início de carreira académica), e resvalou para o pecadilho do pontapé na gramática.

Como me apeteceu, naquela altura, interromper a conversa da minha colega com o seu aluno e apresentar o resultado da pesquisa que tinha acabado de fazer no tal dicionário on-line: “a palavra inserida não foi encontrada”. Optei pela inacção, sabendo que a minha interrupção seria vista como um acto de humilhação infligida à professoral personagem.

Interroguei-me então sobre as barbaridades à língua portuguesa que esta coleguinha cometerá em sala de aula, ou em atendimento aos seus alunos, sem que na maioria dos casos eles se consigam aperceber da boutade. Sem surpresa: é o nível geral do conhecimento da língua em que tropeçamos no dia-a-dia. Com a desajuda de quem se deve prestar a uma função educativa, o nivelamento faz-se por baixo. É o achincalhamento total da língua portuguesa, com a conivência de educadores e a passividade abúlica dos alunos. Com exemplos destes, há que rever a ideia de que é apenas o nível os alunos que está pelas ruas da amargura.


2 comentários:

Anónimo disse...

Concordo quase integralmente com o escreveu. Só gosto da forma como se refere por variadíssimas vezes à sua colega. Coleguinha, ou é usado como uma forma carinhosa de tratar alguém com quem partilhamos a mesma tarefa ou então, como me parece ser o seu caso, de forma pejorativa, tentanto diminuir essa pessoa. Não é a primeira vez que oiço ou leio alguém ligado à area do ensino referir-se desta forma aos seus colegas de trabalho. Será defeito profissional.

PVM disse...

O texto já tem dez anos. Não me recordo quem tinha dado o pontapé na gramática. Mas - posso assegurar - "coleguinha" não terá sido em tom pejorativo. Porventura estava diante de uma jovem professora.