24.2.04

Código de conduta

Em dia de Carnaval planeei escrever sobre o Carnaval desbragado em que o país vive afundado. Fica para amanhã, pois a urgência de um estado de alma contraditório assim o exige. Dissertar sobre o estado carnavalesco do país supõe um exercício mais dado a uma descarga biliar, destilando o cepticismo que se ergue acima da linha do horizonte. Mas o estado de alma momentâneo está nos antípodas desse exercício de mordacidade.

Os olhos também despertam para o lado belo da vida, mesmo quando a desdita desfila mesmo à nossa frente numa passerelle incendiada . Há qualquer coisa de belo, inusitadamente harmónico, mesmo naqueles aspectos que nos levam a franzir o sobrolho de descontentamento. Ontem, por exemplo, quando deparava com as habituais máscaras de Carnaval que já circulavam pela rua. Nunca fui dado a tais entretenimentos. Considero o Carnaval um festejo inútil, porque os foliões procuram fazer de conta, pelo menos neste dia, que o mundo é diferente daquele em que vivem. É uma celebração efémera, um vácuo onde o ser humano atira para trás das costas as misérias vividas ao longo dos outros dias do ano. Só conta a folia. Refugiamo-nos nas máscaras que trajamos.

Ontem consegui esboçar um sorriso ao ver os disfarces que alguns transeuntes transportavam. Tentei, por uma vez, compreender porque está enraizado o costume das pessoas se esconderem por detrás de uma máscara. Tentei desmistificar interpretações que entram no terreno da sociologia. Procurei simplificar. Entender que o Carnaval é uma manifestação de singeleza para o comum dos mortais. É um escape para quem gosta de se divertir. Uma forma diferente de agendar a diversão, obrigando as pessoas a usar da imaginação para encontrar máscaras delirantes, que fujam do normal. E, afinal, faz algum mal entrar no mundo fantástico do faz-de-conta?

É nesta capacidade de encontrar significados diferentes que reside a abertura de espírito que nos coloca no limiar da auto-satisfação. É estimulante ter convicções próprias. Como é animador alicerçar ideias com base num raciocínio elaborado. Mas também é um exercício saudável tentar encontrar o lado oculto que nos desnuda uma concepção ignorada das coisas sobre as quais reflectimos. Até para medir as nossas teorias contra novas abordagens, que nos poderão levar ao abandono dessas teorias ou apenas a refiná-las. O que se convoca é a necessária tolerância, como peça imprescindível de quadros mentais flexíveis que recusam dogmas petrificados.

Exercitar o intelecto e massajar as ideias com as quais não simpatizamos – eis um exigente desafio que deve estar acima de todas as certezas, de todos os dogmas. Conviver na harmonia, discordar e explicar a dissidência, não existir a urgência de eliminar o terreno que nos separa do outro. Trocar ideias, estar aberto às opiniões de outrem, não entrar no debate para convencer nem com o receio de ser derrotado. A discussão pura, pelo prazer da argumentação, pelo delicioso exercício da acareação de ideias. Tolerar, para ser tolerado.

A essência de uma troca genuína, como terreno profícuo para a compreensão do outro e como veículo para o encontro com o eu. O caminho para o bem-estar individual, sem atritos nem convulsões.

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